O mundo em camadas
"O mundo é o que
se vê de onde se está"
Milton Santos
Quase diariamente, ela percorre os 35 km
que separam Taguatinga de Brasília. Não é a única a fazer desse deslocamento
uma rotina, e nem essa é uma dinâmica nova na história da região administrativa do Distrito
Federal, fundada em 1958. Foi nos anos 1950 que operários (incluindo
seu avô) se deslocaram de todo o país para aquela região para construir a nova capital. O
otimismo e a esperança que invadiram o Brasil fizeram aqueles homens e suas
famílias acreditarem que era possível começar vida nova ali, naquela cidade que
era erguida por eles no meio do nada. Mas não demorou muito para a especulação
imobiliária tirá-los do projeto de desenvolvimento que Brasília representava, fazendo
com que fossem alojados em regiões fora do desenho da capital, criando as
cidades-satélites, como Taguatinga.
E é um corpo, o da
artista, entre tantos outros possíveis nesse deslocamento, o ponto de partida
da instalação
sonora PolyTati Representações LTDA: life
in concert, Vol. II que Polyanna Morgana apresenta em sua primeira
exposição individual, na Galeria Ibeu. O espaço expositivo é ocupado por três
painéis. Em dois deles estão pinturas de mapas – em um o de Brasília e no outro
o de Taguatinga. A paleta obedece às cores observadas na paisagem de cada uma
das cidades. Assim, a paisagem de Brasília, como parte da herança arquitetônica
moderna, é reconstruída pela artista predominantemente com as cores branco,
cinza (em referência ao concreto) e verde (da natureza). Já Taguatinga, que
possui outra relação com o espaço urbano, é representada por uma paleta de
cores mais diversificada e vibrante, semelhante às cores das cidades do
interior do Brasil. O terceiro painel, de coloração bem mais neutra, remete à Estrada
Parque, uma das vias de ligação entre Taguatinga e Brasília. Nos três painéis
foram instalados alto-falantes em diferentes alturas, reproduzindo a paisagem
sonora distinta dos três lugares. Em Taguatinga, há o som de comércio popular,
buzinas, pessoas falando alto; a Estrada Parque possui um som de via expressa e
Brasília possui uma paisagem sonora típica, onde se escutam passarinhos, carros
ao longe e pessoas conversando à distância.
Esses mapas visuais e sonoros são uma das muitas
representações possíveis de cada um desses lugares, uma vez que essas imagens têm
como ponto de referência o corpo da artista e a sua relação diária com o espaço.
Vem também da experiência pessoal o nome do trabalho. PolyTati Representações
Ltda. é o nome do escritório do pai da artista em Taguatinga e tem esse nome em
homenagem as duas filhas – Polyanna e Tatiana. Já o termo “Volume II” remete à
representação do percurso, uma vez que o circuito em si, enquanto está sendo
feito, é que deveria ser considerado o “Volume I”. Assim como em trabalhos
anteriores, como a série Mapas de
Percurso – onde a artista caminhava pela cidade e depois construía
representações subjetivas desses percursos –, é no corpo da artista que o
trabalho começa. Mas aqui, como em Edifício
Morada Provisória I (2009-2012), o corpo do outro ganha espaço.
Em um momento quando programas de imagem,
números e coordenadas nos dão a ilusão de ter acesso absoluto do mundo quanto
mais nos afastamos dele, Polyanna Morgana traz o conhecimento do mundo para o
território da pele. A pele dela, uma vez que o trabalho se constrói a partir de
suas percepções dos lugares. A pele do espectador, que é incorporado à obra,
convidado a caminhar pelo ambiente e a construir sua própria paisagem a partir
dos indícios apresentados pela artista. E na pele da cidade, que nesta montagem
é incorporada ao trabalho com a paisagem sonora e de imagens urbanas que invade
o espaço expositivo pelas grandes janelas descobertas.
O olhar das máquinas vem construindo com o
passar do tempo um mundo que cada vez menos nos reconhecemos como parte. Um
mundo distante, no qual somos incapazes de interferir. A artista traz o mundo
de volta para a escala humana, aquele que vemos “só” até onde o corpo alcança.
O horizonte deixa de ser o das máquinas, que pretendem dar conta do mundo, para
ser o do ser humano, limitado e parcial, que se conforma com o que vê pelas
ruas por onde passa. Ela assim parece nos dizer que o mais profundo ainda é a
pele.
Fernanda Lopes
Rio de Janeiro, Junho de 2012