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Texto de Cesar Kiraly para a individual "No campo das beterradas", de Mario Camargo

1. Uma linha traçada com terra avolumada, depois um sem números de pequenos buracos, para um campo de beterrabas só faltam as sementes. Ainda que demorasse muito, mesmo sem plantar, não seria possível um broto? Os pássaros, o vento, a explosão do celeiro? São tantos os caminhos para tê-lo, quase perco o fôlego. Pensando assim é quase um absurdo não multiplicar as linhas pacientes à germinação.

2. Esther Emílio Carlos, incansável, dona de uma belíssima coleção, não dividia o quarto de dormir com obras de arte. A lida contínua faz redobrar à vigília aos estímulos nos instantes antes de dormir. Apenas um trabalho antecedia o sono, uma tela do Mario Camargo. Não é o Mario de hoje, claro, não havia ainda o desafio do material a levá-lo do epílogo moderno ao prólogo da abstração contemporânea. Algo, porém, já estava lá, Esther o sabia, como só olhos escondidos detrás de imensos óculos escuros o sabem, ao invés de ser colonizada em figuras explícitas, deixava sua imaginação plantar sobre o branco.

3. A abstração na arte contemporânea não é a moderna. Não naquela conhecida pretensão da semântica abstrata: pureza, elegância, funcionalidade, concretude, finalidade e afeto. As anomalias sempre guardam surpresas. É o campo das beterrabas. Não há política explícita. A inscrição social não lhe infla a leitura. Ela não diz as alianças. Além do que, interpretá-la como se quer, de acordo com os olhos de quem vê, é tomá-la muito por baixo, mas isso não significa dizer que é um sólido que se impõe sobre a realidade. Ela pertence à terra em sua dupla acepção. É especial, a abstração, nesse novo ambiente, porque não é capaz de recusar a sua impureza e, de um jeito único no contemporâneo, dissimula as procedências das matérias que usa para compor, numa eficiência vedada às demais formas de representar. A dissimulação da procedência também vale para o artista, ele não precisa, se de corpo abstrato, do vínculo natural com o assunto que aborda, ora, não é imperioso ser do campo para esperar beterrabas. Apesar disso, há sempre um objeto, uma vivência representada, cuja identificação é esquecida ou omitida, a imagem é sempre a parte falseada de alguma coisa de uma genealogia que não se dá à prova.

4. No Mario, o desejo pela impureza, pela solidão dos números primos, vivido no emprego da costura e na escolha do material, faz com que a pintura, sobretudo nos brancos, cujos volumes são obtidos pela junção das partes, pelas dobras, sirva para consolidar objeto, ele mesmo abstrato. Não é tanto pintura abstrata, quanto de descaracterização do mundano. A cor não é mobilizada na lógica do pigmento, mas do tingimento, a integridade da costura é protagonista até o último momento, sendo a separação das partes um recurso, se, somente se, a despeito de todos os esforços em contrário, a coloração se impuser como mancha que se sobrepõe à poética do acidente calculado.

5. O contemporâneo é ansioso e prefere o depósito de legumes nascidos, colhidos sei lá onde, se cênicos, feitos sei lá por quem, ao campo imaginativo preparado à germinação. Por isso não se dever descurar desta nova prática abstrata, ela não é para ser completada arbitrariamente, tal como seria ao se levar uma beterraba nascida ao campo preparado. Há complexidade mínima da qual não se pode poupar quem experimenta as obras de arte, ou assemelhadas, que é anterior à vontade de ver o que se quer. O campo precisa ser imagem sem que haja qualquer folha ou caule vermelho. As manchas vermelhas estão crescendo na terra, suculentas, açucaradas, misturadas à terra, assimétricas em suas muitas raízes a lhe prolongarem o corpo, com todo o poder de subtrair ao solo, uma intensa potência de fazer tingir, que os olhos não veem, mas está deles diante.

6. Não são telas, não há molduras, nem esculturas, são entomologicamente alfinetadas às paredes, há como ver que as partes das quais são feitas oscilam em origem, mais chegam à mão do artista do que o contrário, as costuras pouco têm de sutura, nem sempre o que costuram precisa ser costurado, apesar da feminilidade da linha e agulha, trata-se do uso não funcional da indústria e do trabalho, mais do que o carinho com o pano da roupa. Se o mundo não se tornar apenas um campo de beterrabas, arruinando a poética, é de tal endereçamento indeterminado que nasce sua beleza, porque é preciso sentir, na obra, as topografias sendo contornadas, aceitas, até certo ponto, o estabelecimento de sequências harmônicas que, depois, interrompidas, são retomadas, como numa frase cheia de apostos. Os tubérculos brotam, outras imagens germinam junto, concorrentes, mas elas não são arbitrárias, habitam o contexto, como ervas daninha. É um sonho, sim, no qual as acepções vizinhas tornam as demais fascinantes, não se esquivando delas.

7. Pasolini, em um ensaio publicado no seu Escritos Corsários, escreve sobre a modificação industrial da paisagem italiana sendo capaz de extinguir a população dos vaga-lumes. As pessoas mais novas, mesmo há época, o escrito é dos anos 70, só saberiam dos insetos iluminadores a partir de relatos. É parecido entre nós. Ele usa o exemplo como analogia ao tão lamentável quanto desaparecimento de formas de sociabilidade e práticas dialetais do idioma, como o seu próprio friulano, destruídos pelo monopólio do consumismo sobre os demais valores. Didi-Huberman, por sua vez, resgata o texto, fornecendo-lhe complemento esperançoso, certo do vaga-lume, na qualidade de metáfora do futuro, ser indestrutível. A metáfora do vaga-lume não é um vaga-lume, depois que morre, não existe mais, se calhar, nem como figura de linguagem é capaz de levantar voo. No Campo das Beterrabas serve na leitura. Há algo a se esperar dele. A abstração, se praticada impura, provoca a imaginação a descobrir as alternativas. Mas não brotarão vaga-lumes.


Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU desde 2015, além de professor de Estética e Teoria Política à UFF.


[...] houve, não há mais [...] o quê? [...] vaga-lumes, na Itália [...] antes tinha? [...] sim, até meados dos anos sessenta, depois da guerra, as noites eram escuras, repletas de pontos luminosos, lê-se no Pasolini [...] é a energia elétrica, eles estão lá, só não vemos [...] não estão, as luzes se apagam, não sobrou nenhum, mesmo longe das cidades [...] isso quer dizer alguma coisa [...] é uma metáfora, Didi-Huberman diz que ela não morre [...] se der sorte, por aqui, ainda se encontra [...] uma metáfora? [...] é disso que trata No Campo das Beterrabas? [...] à espera do nascimento de vaga-lumes na terra? [...] uma metáfora não garante sobrevida ao que se quer que persista existindo [...] é sobre beterrabas e não é, ao mesmo tempo [...] é sobre olhar o branco, cultivado, em materiais escolhidos, sempre diferentes, aproximados pela linha de costura, dobrados por ela, contornando dificuldades, incitando as imagens a serem vistas germinativas, sobre e debaixo, mas nem arbitrárias, nem invisíveis, potencialmente capazes de imprimir manchas doces [...] avermelhadas, luminescentes [...]


(Cesar Kiraly)


No campo das beterrabas - Mario Camargo

 



Foi um longo período de espera para Mario Camargo, que teve a individual adiada quando a crise pandêmica impôs suas normas, fazendo com que os estabelecimentos fechassem as portas ao público. Dois anos depois, o artista irá inaugurar a primeira exposição inédita da Galeria de Arte Ibeu, no Jardim Botânico, desde o início da pandemia: “No Campo das Beterrabas” abre no dia 9 de novembro, às 17h, sob curadoria de Cesar Kiraly. Na ocasião, o Coral do Ibeu, apresentará algumas canções de seu repertório, às 19h.

Os trabalhos surgem como peles nas paredes, sustentadas por agulhas. Em cerca de dez obras apresentadas, a tinta será a substituída pela costura industrial. Movimentos de encolhimentos e franzidos surgirão e substituirão a cor, de forma pictórica, deixando à mostra uma infinidade de buracos e rasgos, tais como arados, representados pelas costuras industriais, onde só faltam as sementes germinarem para revelar, futuramente as cores.

“São tantos os caminhos para esta germinação que quase perdermos o fôlego. A cor não é mobilizada na lógica dos pigmentos, mas do tingimento; a integridade da costura é a protagonista até o último momento. A despeito de todos esforços, a coloração não se sobrepõe à poética do acidente costurado e a abstração se pratica impura, provocando a imaginação a descobrir alternativas”, revela o artista Mario Camargo.

Como quase todas as crianças, Mario Camargo demonstrou, desde sempre, interesse pelo desenho. Por convite de uma amiga pintora, fez sua primeira exposição e nunca mais parou. Esther Emílio Carlos, crítica de arte do Ibeu, se apaixonou pelo seu trabalho e abriu várias portas: ele chegou a expor em Santiago do Chile e depois em Paris. Quando participou da feira de arte MAC 2000, em Paris, foi o único brasileiro presente entre 100 artistas franceses. Chamou atenção neste evento sua forma de pintar, executada diretamente no chão, ao sol, usando tinta acrílica líquida. Mario interrompia a secagem com jato d’água e, neste processo de busca quase arqueológica, criava suas obras. Na ocasião, Pierre Restany, crítico de arte francês, profetizou: “você abandonará os chassis e sua pintura se tornará a pele das paredes”. Durante anos o artista conviveu com estas palavras, que se tornaram realidade há pouco tempo.

A exposição nas palavras do curador “Não são telas, não há molduras, nem esculturas, são entomologicamente presas por agulhas às paredes, há como ver que as partes das quais são feitas oscilam em origem, mais chegam à mão do artista do que o contrário, as costuras pouco têm de sutura, nem sempre o que costuram precisa ser costurado, apesar da feminilidade da linha e agulha, trata-se do uso não funcional da indústria e do trabalho, mais do que o carinho com o pano da roupa. Se o mundo não se tornar apenas um campo de beterrabas, arruinando a poética, é de tal endereçamento indeterminado que nasce sua beleza, porque é preciso sentir, na obra, as topografias sendo contornadas, aceitas, até certo ponto, o estabelecimento de sequências harmônicas que, depois, interrompidas, são retomadas, como numa frase cheia de apostos. Os tubérculos brotam, outras imagens germinam junto, concorrentes, mas elas não são arbitrárias, habitam o contexto, como ervas daninha. É um sonho, sim, no qual as acepções vizinhas tornam as demais fascinantes, não se esquivando delas”. Cesar Kiraly é curador da Galeria de Arte Ibeu desde 2015, além de professor de Estética e Teoria Política da UFF.


NO CAMPO DAS BETERRABAS 
Abertura: 9 de novembro de 2022, das 17h às 20h
Visitação: de 10 de novembro a 22 de dezembro de 2022
Funcionamento: quartas e quintas, das 13h às 19h; sextas, das 12h às às 18h
Local: Galeria de Arte Ibeu
Endereço: Rua Maria Angélica, 168 - Jardim Botânico –RJ
Entrada gratuita

Informações à imprensa sobre a exposição: BriefCom Assessoria de Comunicação - Bia Sampaio: +55 21 98181-8351/biasampaio@briefcom.com.br

A arte de sobreviver a um naufrágio | Por Cesar Kiraly

 


é inegável que se encontram mais ausências, muito embora a quantidade de imagens e objetos [...] são traços e pontilhados que transformam a fragilidade albina da parede ao fundo [...] as embarcações estão pela metade [...] o encobrimento [...] a parte debaixo é que faz delas naufrágios [...] não pertencem a um tempo específico [...] desde quando se flutua, afunda-se [...] o oxidante na gravura funciona como cumplicidade do efeito prolongado das ondas que se influenciam [...] a nenhuma pessoa é dado relatar ter experimentado um naufrágio até o fim [...] o fim do oxigênio é como a ausência [...] o náufrago cola imagens para completar o que lhe falta [...] primeiro o movimento invade e depois retorna abandonando conchas [...] no papel são preservadas memórias que se dissolvem na água salgada [...] todos confirmavam que os cabelos pertenciam [...] nem mulher, nem homem [...] as memórias assistem a ousadia do oceano em avançar aos poucos para apagá-las, disso extraem força [...] amigos, um furo [...] não, nunca aprendera a nadar [...] entretanto, sobrevivera [...]



1. A partir do séc. XVIII, mais especificamente, desde o momento em que Diderot começou a se dedicar a escrever sobre os Salões de Paris, para ser lido pelos nobres impossibilitados de fazerem a viagem para verem com os próprios olhos, a arte teve sua trajetória misturada a do texto. O cético Diderot compunha suas linhas descrevendo as obras de arte, os estilos dos artistas, os artistas, o público, toda a cena da arte. Restava clara, aos olhos dele, a natureza eminentemente social da obra de arte. A arte contemporânea amplifica esta dependência, inclusive, em trabalhos que nem mesmo existem fisicamente. As obras não são simplesmente objetos, nem, tão somente, intuições acerca do modo de representar, mas acontecimentos que servem de índice ao efeito que produzem no mundo, o contágio exercido sobre as opiniões, mais tudo aquilo que se escreve sobre, e que antecipa, de certa forma, o lugar a ser ocupado pelos novos eventos. A obra, principalmente a contemporânea, por causa mesmo do esforço de Diderot, é uma cena imersiva. Os gregos, por sua vez, dispunham de uma palavra para denotar prática remissível à inventada por Diderot. O termo Ekphrasis abrange a descrição de objetos artísticos, até mesmo prevê a invenção literária de obras visuais, antecipa a redução da distância entre a imagem e o texto, mas ainda apresenta concepção isolada da obra e não entende a vida interna dos envolvidos, muito menos a daquele que escreve, como fazendo parte dela. Por outro lado, apesar das imensas dificuldades enfrentadas por Diderot, ele contou com a facilidade de não ter de inventar o gênero literário no qual se expressaria, mas adaptá-lo. Montaigne havia desenvolvido a forma de escrever, que se mostraria um gênero literário, mas também um tipo de filosofia cética, usada por Diderot para falar de arte, desde si mesmo, da sua intimidade, ainda que dissimulada, o ensaio.


2. No ensaio Diderot encontrou os limites e as amplitudes para comentar sobre as pessoas que visitam salões para verem a si mesmas retratadas direta ou indiretamente. O modo como assistem a si próprias ao julgarem a semelhança entre os retratos e os retratados ou mesmo aos aristocratas, a depender da aura manifesta em seus rostos representados. O ensaio serve a Diderot para lamentar que o assombro a ser provocado pela arte seja constrangido por tal sorte de expediente fútil. Afinal, a experiência artística, justamente ao provocar o texto, faz entrever o quão longe pode ser levada. Por isso, essa forma de escrever se tornou tão adaptada a criticar, chegando, até, a ser denominada, simplesmente, de crítica. Isso porque o escritor percebe que, ao ser levado a escrever sobre a obra, ao não conseguir mais se desviar de fazê-lo, de tê-la como seu mundo todo, recebe a evidência de que pode esperar que esta realize o que ele, internamente, é incapaz de fazer, ser sempre mais do que si mesma, cada vez mais lúcida, cada vez menos cruel no exercício dessa lucidez. O ensaio sobre arte dá a perceber a incapacidade da arte, as suas limitações, sim, mas também que essas falhas são sempre pontuais e aparecem porque quem escreve sabe que não é muito esperar ainda mais dela, tal certeza, na lida com a obra, é a marca mesma da possibilidade da superação. É nesse sentido que se pode dizer pela natureza textual da obra de arte.


3. Aqueles a quem é dado persistir na escrita inaugurada por Montaigne e dedicada, por Diderot, ao acontecimento artístico, assistiram à interrupção inédita, não só dos salões, cujo prestígio oscila, em virtude de outras formas de se fazer conhecido do público, mas de quase toda a atividade expositiva. Isso se deveu à pandemia provocada por um vírus mortal e foi uma forma de amenizar os contágios. O IBEU, que hoje comemora 85 anos, foi obrigado, como o mundo todo, a fechar a sua Galeria de Arte. Ela fechou abrigando uma exposição cujo tema, ironicamente pensado pelo destino, é o naufrágio. A galeria, pelo que tudo indica, ficou lá, sozinha, até agora, com esses objetos, que ninguém pode ver. Coube, então, de modo imprevisto, ao Márcio Diegues, a exposição mais longa de um espaço expositivo, tradicionalíssimo, que conta com mais de 60 anos. O artista mesmo concordou que seria importante deixar tudo lá, sem mexer em nada. Inclusive, tendo, em uma das paredes, um imenso desenho, feito de nanquim, de uma onda a sugerir a inundação de dentro para fora, de dentro da galeria, depois, tomando o lado de fora, como se o desastre tivesse começado ali e não em Wuhan. Não seria estranho ver no mesmo desenho algo como uma mortífera nuvem bíblica de gafanhotos. Tendo como último título ‘Como Sobreviver a um Naufrágio’ fomos instados a fugir do espaço para salvar as nossas vidas, imaginando que, sendo o futuro incerto, na pior das hipóteses, a posteridade reencontraria aquela exposição, com relação a qual, no passado, havíamos lamentado a hora de finalmente apagar o mural, quem sabe com o uso de escafandristas.


4. Como se comportaria Diderot na pandemia? A peste negra é anterior aos salões e às galerias de arte, e a gripe espanhola, apesar de devastadora, não contava com uma humanidade capaz de bem controlar o deslocamento das suas populações ou excelentes prognósticos de criação de vacinas, logo, não provocou o fechamento dos espaços públicos e o confinamento das pessoas em casa. O cético escreveria sobre os negacionistas não gostarem de arte ou sobre os alarmistas não gostarem de negacionistas que não gostam de arte? Sobre o desespero dos artistas em não serem esquecidos? A adesão confusa aos mais variados espectros da ideologia política, para receberem alguma simpatia a partir do pertencimento? Ou ele surpreenderia com o silêncio? Como dar a entender o impacto da retração do espaço público, causado pela pandemia, pelas novas tecnologias de comunicação, no mundo da arte, ainda mais deformado pela incrível desigualdade entre as instituições culturais para retornarem às suas atividades? As instituições mais ricas voltaram antes, com mais segurança, isoladas e soberanas, além de terem inventado as melhores, e sedutoras, plataformas virtuais. O cético se esforçaria para mostrar a contradição entre o discurso de integração dos grupos politicamente mais vulneráveis, como indígenas e transexuais, a partir do trabalho como artistas, curadores e funcionários, tanto pelo mercado, quanto pelas principais instituições culturais, e a relação de trabalho cada vez mais precária, obrigando o seu pessoal a se estabelecer juridicamente como empresário para não precisar recolher encargos sociais e trabalhistas? A inserção de novas fisionomias precisa ser combinada com a piora da vida de todo mundo que depende do trabalho? Como dar a entender a captura dos melhores valores pelos processos históricos mais nefastos? Será que Diderot seria bem-sucedido na tarefa de descrever a arte contemporânea, nesta cena tão repleta de sutilezas? Seria ele capaz de mostrar o potencial dela, apesar de tudo, de se contrapor ao extremismo e revigorar a vida comum?



5. A escrita sobre arte se mistura às obras e as compõem. Teria Diderot sentido simpatia pelo modo como se agregam tendências políticas díspares, dando voz a estéticas transgressoras? Aprovaria ele o ardil relacional para viabilizar as luzes? Ora, não era ele mesmo esperançoso de abrir os olhos da Catarina II para o respeito às liberdades? Como receberia a cumplicidade cada vez maior entre o mercado e o discurso universitário? O que diria sobre a obsolescência do gênero que ajudou a criar com a sua triste substituição pelos textos explicativos ou de contextualização histórica? Imagino que fosse gostar de conhecer o Grupo Frente e artistas agudamente conceituais como José Damasceno e Bianca Madruga. Consigo vê-lo vestido com roupas modernas, de máscara, munido de comprovante de vacinação, com frio, diante da frase de Antonio Gramsci, reproduzida em verde, como letreiro, por Alfredo Jaar, com letras parecidas ao “Eu é Uma” da Agrippina Manhattan: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. Penso que a tomaria como imprudente, não pelo fato de os monstros surgirem no claro-escuro, mas por dar a entender a existência de um estado que não o claro-escuro. Ora, suponho que o cético pensaria que estamos sempre entre um mundo que morreu e outro que nasce.


6. Houve um tempo, não muito distante, na América Latina, sobretudo, em que alguns grupos eram isolados do poder político e dele só sofriam o efeito. Nessa época, críticos, como Mario Pedrosa, repreendiam a falta de politicidade da arte brasileira. Nela faltava a disposição de estabelecer meios para que o poder pudesse ser melhor distribuído, nem que fosse, como na sua defesa dos trabalhos dos pacientes, da Nise da Silveira, expostos no IBEU, pela Esther Emilio Carlos, em momentos diferentes, simplesmente o poder de existir sem ser desejado. Ainda hoje, a capacidade de produzir efeitos políticos, para o bem e para o mal, ainda é bastante desigual, mas não tanto, inclusive, na arte contemporânea. Um dos marcadores, por exemplo, é a impossibilidade de se falar de obra de arte contemporânea sem que a interpelação pela identidade componha o estatuto da obra de arte. A frase de efeito que aponta a inevitabilidade da política em todo ato estético, contudo, já pode ser interpretada de modo menos ingênuo. Se a tão desejada convergência entre estética e ética é, no mais das vezes, bem-intencionada, talvez seja o caso, em certos momentos, de nos esforçarmos pela menor politicidade possível do ato estético, pelo menos nos seus momentos de ofensividade. Afinal, na política alguém é sempre, mesmo que devidamente, mormente, indevidamente, posto a sofrer.


7. Ainda no séc. XVIII um outro cético ensaísta escreve um ensaio de título A Arte de Escrever Ensaios. Ele não diz nada sobre como escrever ensaios. Na verdade, trata-se mais de incentivar que estes sejam escritos e o faz a partir de um modo de vida que vê como preferível. Há o mundo dos intelectuais que não convivem com ninguém e o das pessoas que convivem, mas não querem pensar. Claro, há também o das que nem leem ou pensam e nem convivem, mas essas são almas perdidas. Hume acredita que o mundo do ensaio é aquele em que os pensadores falam com as demais pessoas, frequentam as ruas em que a vida acontece, e todo mundo se interessa pelo que se pensa, menos para ser convencidas, porque uma conversa em que o interlocutor quer convencer é demais aborrecida, mas por que há um prazer em lidar com ideias diferentes. Trata-se de uma maneira de viver em que o naufrágio é sentido como um peso, algo ruim, porque, apesar da aventura, nos priva do outro. O ensaio é a vida para a qual se quer voltar.


8. Márcio nos mostrava como um naufrágio seria interessante e como precisaríamos fazer para a ele sobreviver. Até que fomos surpreendidos pelo acidente e não tínhamos pista do que fazer. A sobrevivência se deveu menos a saber o procedimento correto e mais ao acaso somado a alguma prudência. Havia o tempo a passar entre o naufrágio e o retorno a uma vida de ensaios, mesmo tão precária. Primeiro, desejar retornar ao estímulo aos bons espaços de convivência era uma motivação, mas apenas se não se a tomasse como uma finalidade, porque podia muito bem não acontecer, demorar demais, sendo, então, mais causa de desespero do que de qualquer outra coisa. Assim, atravessar implicava a aceitação de olhar o mar como intuição da pura felicidade, como diria Hans Blumenberg. Depois, certo contentamento, não por passar por tudo isso, porém ser testemunha de um tempo histórico relevante. Afinal, não deixa de ter uma beleza trágica, toda aquela madeira submergindo aos poucos, os objetos de uma vida inteira começando a boiar em infinitos tons coloridos, desde que não se pudesse fazer nada para ajudar. Nada mais irônico do que contemplar com interesse uma imagem que se desfaz em outra, sabendo que a perspectiva na qual se encontra também afunda. A quem caberia escrever ensaios se a observação do naufrágio a ser contada é acompanhada por quem, mesmo sabendo que afunda, não pode se dar ao luxo de se sentir visto pelo náufrago que assiste? Esse seria um outro ao qual ensaiar? Como inventar um salão no qual com ele se possa falar?     


Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Teoria Política e Estética no Departamento de Ciência Política da UFF. 





Reinauguração da individual "Como sobreviver a um naufrágio", de Márcio Diegues

 

 

Após um longo período sem atividades presenciais, em decorrência dos tempos de pandemia, a Galeria de Arte Ibeu reinaugura o seu espaço de exposições no Jardim Botânico com a individual “Como sobreviver a um naufrágio”, do artista Márcio Diegues. A mostra apresenta um recorte da produção recente de Diegues como também um resgate do projeto expositivo previamente realizado na Galeria Ibeu, em março de 2020, cuja exibição precisou ser interrompida por conta do início do período de lockdown em nosso país. 



Sobre a exposição:

O mar da cidade do Rio de Janeiro foi uma das inspirações da mostra “Como sobreviver a um naufrágio”, composta de desenhos, objetos, gravuras e um desenho instalativo de grande formato. Com curadoria de Cesar Kiraly, a individual é composta de que partilham a experiência do naufrágio, da ruína e da falência mimética como ponto de fissura visual e conceitual com a realidade.

“Uma das coisas importantes na minha produção foi ler uma antologia escrita por um português no século XVII, que é uma coletânea das histórias de naufrágio que acontecem desde o século XV, a partir da ida para as Índias. Nessas histórias, o mais notável eram os afundamentos, como eram violentos e como se perdia uma ideia de planejamento, um objetivo a cumprir.”, explica o artista.    

A partir desses relatos, Diegues passa a pensar o naufrágio como uma metáfora visual e conceitual, já que não é apenas o corpo físico que afunda, mas também a ideia de um objetivo que não consegue se concluir. Este conceito inspirou o artista a produzir gravuras, cadernos de desenho e a coletar imagens que tinham a ver com a vivência no Rio de Janeiro, buscando o sentido da representação do mar.

“Não represento a água em si, mas a ideia de que todo objeto afunda em um lugar, em uma dimensão. Isso ajuda a entender que o mar é uma dimensão imaginária e isso me ajuda a desenvolver meus trabalhos. Tem também uma ideia contemporânea de o naufrágio ser uma falência de uma superestrutura, que pode ser um barco ou submarino, mas também um objetivo de vida, algo que foi planejado e não deu certo. A ideia de naufrágio também fala de traumas, desse processo de mergulho em si mesmo.”, conclui.

O evento de reinauguração da Galeria de Arte Ibeu acontece no dia 10 de agosto, das 17h às 20h. Na ocasião, às 19h, o público também poderá conhecer o trabalho do Coral do Ibeu, que apresentará algumas canções de seu repertório. 

 

“COMO SOBREVIVER A UM NAUFRÁGIO”
Inauguração: 10 de agosto, de 17h às 20h
Visitação: 11 de agosto a 02 de setembro de 2022

Funcionamento: Quartas e quintas, de 13h às 19h; sextas, de 12h às 18h
Local: Galeria de Arte Ibeu
Endereço: Rua Maria Angélica, 168 - Jardim Botânico
Tel.: 3239-2863 | Contato: cultural@ibeu.org.br
ENTRADA FRANCA – Uso de máscaras recomendado, porém, não-obrigatório




Sobre o artista: Márcio Diegues (1988-General Salgado, SP) é artista e professor,  pesquisa o desenho como fio condutor de suas relações com a  paisagem e o espaço, desdobrando-o em gravuras, livros de artista,  objetos, instalações, ações de coleta e obras site specific. É graduado  em Artes Visuais pela UEL, Londrina, em 2012, e mestre em  Linguagens Visuais pela EBA-UFRJ, em 2017. Atualmente reside em Belo Horizonte-MG e é doutorando e professor assistente de desenho no Departamento de Desenho da EBA-UFMG.


A Arte Contemporânea como Língua Estrangeira | Por: Cesar Kiraly

 


1. O aprendizado de um idioma estrangeiro é quase sempre pensado do ponto de vista prático. A utilidade é associada à empregabilidade. Disso se segue o esforço das famílias em matricular os filhos nos cursos de línguas; hodiernamente, inclusive, no ensino bilingue, capaz de dotar a criança de dois idiomas maternos. Esta, no passado, uma especificidade das casas compostas de culturas emigrantes, insistentes em não perder o laço com o passado. O mercado de trabalho, como motivo para estudar idiomas, é uma particularidade que se inicia com o inglês, entre nós, principalmente a partir dos anos cinquenta, depois abarcando as línguas de outros parceiros comerciais, como o alemão, o espanhol, e, na última década, não sem imensas dificuldades, o chinês. Antes disso, como comentam nossos avós, o francês era a fala outra que se arranhava, cujas noções eram adquiridas na escola e a fluência uma marca de distinção social. Ainda que as conversas fossem entremeadas com pequenas expressões em francês, conseguir conversar sem dificuldades não deixava de ser ostentado como um dos mais importantes predicados. O biquinho até hoje é chique, mas, como se diz, não enche barriga na época da competição.

2. Por outro lado, rapidamente se percebeu que a empregabilidade e a distinção social não são os melhores motivos, ainda que de apelo inegável, para se aventurar nos sacrifícios de se aprender uma nova língua. Ora, é muito difícil competir com os bilingues e, para se ostentar distinção, é preciso frequentar os ambientes em que ela faz sentido. A melhor razão, na verdade, é dispor de uma alternativa à realidade imediata. O campo semântico de estrangeiro é bastante sugestivo, nem mesmo a globalização ou a virtualidade foram capazes de restringi-lo. Ele é composto por estranho, alheio, outro, diferente, transcendente, exótico, sem esquecermos do divertido alienígena. Disso se segue, a não ser pelo idioma materno, todas as línguas, porque indiretas à realidade imediata, trazem consigo um perigo. Não importa se o idioma aprendido pertence a um povo em momento de vigor comercial ou a um grupamento social extinto. Se a língua é popular, como o inglês ou o espanhol, ela atrai um sem número de variações provocadas pelo contexto de origem daqueles que se aproximam dela, sendo quase impossível encontrar um âmbito em que o idioma padrão seja falado, se é impopular, o contexto original dos seus sabores remete a um mundo muito distante, quase nunca querendo dizer aquilo que queremos dizer com ela. Se, poeticamente, até mesmo a nossa língua nos é estrangeira, o idioma diferente do nosso, adquirido, desperta uma sensibilidade exótica para o que é em si, por que não, alienígena.

3. Por que um idioma estrangeiro seria perigoso? Por que o risco por ele oferecido seria relevante? Valeria à pena, aceitar o risco da diferença para ganhar as delícias de uma alternativa à realidade? Há algo comum à empregabilidade e à distinção que participa desse perigo. O emprego e a distinção nos oferecem independência à realidade, tal como um novo idioma, ainda que em situações outras. Imagine só, ter a sorte de deter uma diferença desejada, como uma beleza exótica, uma imaginação publicitária, a habilidade de fazer algo útil que poucos conseguem, decifrar tendências etc. Apenas uma dessas qualidades permite que a pessoa consiga viver em qualquer lugar, sem estar à mercê dos inúmeros vínculos de dependência dos quais a sociabilidade depende. Claro, falar inglês, por si só, não permite que ninguém tenha um lugar nesse mundo dentro do mundo, mas por certo é uma condição, ainda que não suficiente. Além do que, o idioma estrangeiro é a parcela de independência a que se pode pertencer, se não vivendo de forma autossuficiente, pelo menos tendo uma via de acesso a obtenção de uma perspectiva emancipada. O perigo? Ué, mesmo sem a sorte de habitar o mundo como a um quintal, saber uma língua estrangeira é ter o estranho despertado dentro de si, como um demônio particular, um grilo falante, a perceber o que todos percebem, mas também de outro jeito, a partir de um ou mais pontos de comparação. Mesmo as palavras mais comuns, as expressões mais singelas, são colocadas em novas situações, em outras bases. Se mais de um idioma é invocado tem-se uma infinidade de estranhas relações entre as palavras, os sentimentos e as situações. Não que o falante de várias línguas exercite a estranheza o tempo todo, mas a perspectiva está sempre lá, nele, latente, como um espírito assediador a sussurrar “é assim porque é aqui, lá é de outro jeito, lá se sente diferente, os acidentes são outros, não é necessário que sejamos assim”.

4. Há perigo porque sendo um estranho que não se parece um estranho, camuflado, como um de nós, aquele que compara uma palavra, uma expressão, guarda nele a capacidade de sugerir, sem que ninguém se dê conta, que as coisas se tornem de outro jeito. Se com um emprego distinto acarreta o risco de exercer esse efeito sobre a vida dos outros que o admiram, sem nada temer, na mais completa autonomia. Mas isso não é bom? Claro, mas nem todo mundo fala um idioma estrangeiro, ou se fala, nem todo mundo se dá conta do estranho dentro da estranheza, logo, apesar da independência, não se apercebe dos efeitos colaterais do manejo da diferença. Afinal, perceber, ou sugerir, que as coisas não precisam ser como são, ou que podem ser diferentes, ocasiona, sem o desenvolvimento de alguma prudência, um infinito mal estar com o mundo em que se está. Mas o perigo vai além disso, porque o perspectivismo ingênuo leva ao mal estar, não só, esse desperta modos de sentir muito piores, como o ressentimento. Há momentos em que o conteúdo do sentimento negativo é justificado, como diante de injustiças profundas, donde é móbil para algum melhoramento social, pelo qual é importante o risco, noutros não, demonstrando apenas incapacidade de lidar com os efeitos de estranheza que uma língua estranha inaugurou. Mesmo assim, se o conteúdo implicado no ressentimento, por vezes, tem razão de ser, ele, nele mesmo, é um círculo vicioso, que, ao perceber a falta de necessidade do mundo, condena-o simplesmente porque lhe parece estranho. Se é compreensível recear o estranho, ao mesmo tempo em que é preciso aprendê-lo, como alheio, para perceber os detalhes do que é familiar, materno, o ressentimento que essa perspectiva torna possível, por si só, não se justifica, porque apenas a condenação do familiar pelo familiar, ou pelo alienígena feito familiar, faz sentido, é preciso um novo idioma para condenar a realidade em que se está, não porque ela não é outra coisa, mas porque a diferença mostra que ela pode ser melhor do que si mesma. Se ela for incapaz, não há nada com o que se ressentir, mas lamentar.

5. A parte estrangeira de nós mesmos é inevitavelmente melancólica. Um idioma estranho faz com que os hábitos pesem sobre nossos dias, contamina-nos com as toxinas exaladas pelo mofo escuro e pelo tédio. Não há novidade nisso, nem há problema. Na verdade, mais deve a beleza à melancolia do que a qualquer outro tipo de afeto. Mas ela não é só uma sensibilidade especial da qual se alimenta a diferença. A melancolia é também intolerância à melancolia e a intolerância à melancolia é o ressentimento. Nele mora uma imensa potência de apresentar o mundo em termos adequados, mais atentos e dedicados, porque, movendo-se em um idioma outro à localidade que o incomoda, aprendido adulto, revisita a linguagem na qual se insere no dia a dia. No ressentimento, entretanto, mora também a indisposição com toda perspectiva estranha que não a adotada para ressentir, a insatisfação com toda a diferença que não aquela usada para sair do mundo imediato, donde a imensa facilidade do ressentimento para criar laços duradouros. Não é tão simplório quanto dizer que o ódio aproxima as pessoas, mas que o apaixonamento por uma perspectiva estranha, que evita outros tipos de alheamento, permite a cumplicidade entre duas pessoas que se recusam a falar outra língua, muito embora o idioma que falem nem seja aquele que lhes é materno, nem seja o do lugar onde estão. É como compartilhar um trauma, mas em oposição a todos os outros. A melancolia não leva necessariamente ao ressentimento, mas é a sua condição. Além do que, o ressentimento é o modo mais eficiente de escapar da inatividade melancólica, tornando o sentimento negativo em energia contra o mundo ou a favor de certa diferença.

6. A arte contemporânea é uma língua estrangeira. Uma vez que ela não tem uma nação, sendo essa, talvez, uma das suas maiores virtudes, é sempre um idioma aprendido adulto, seja lá onde for falada. Essa é uma clara distinção entre a arte contemporânea e a arte em geral. Ela é uma língua em que inadequados do mundo todo podem se comunicar. Isso permite que os falantes disponham de um vocabulário comum, mas que falhem ao se referirem à problemas locais uns para os outros. Isso porque cada um vem de um contexto diferente. As pessoas buscam aprender a arte contemporânea em virtude de problemas locais, mas ela mesma é uma língua estranha geral utilizada para que diferentes comuniquem o que os outros só entendem, via de regra, alusivamente. Não é bem certo dizer se a melancolia leva aos idiomas estrangeiros ou se a perspectiva estranha inaugura a melancolia, na maior parte das vezes, a língua alienígena é aprendida na adolescência, fase, em si mesma, anômala da vida. O mercado de arte contemporânea, na verdade, absorve o local passível de alguma sensação de compreensão geral, momentos em que as pessoas se convencem da existência de uma analogia mais ou menos adequada, ainda que haja muita confusão sobre os referentes. É por isso que é o caso de dizer que a arte contemporânea, apesar de um idioma geral, não é, nem deveria se pretender, uma linguagem universal, como foi o caso da arte do renascimento ou da arte moderna. Ela é uma linguagem dos problemas locais que comunica para um público mais amplo aquilo sobre o que o idioma materno resiste em conseguir dizer. Nada mais compreensível que as comunidades, quão mais apegadas às suas tradições, menos disponíveis estejam ao que a arte contemporânea tem para dizer. O artista, com essa língua diferente que ele aprende, passa a sugerir, por experiências e objetos, o campo semântico no qual está o evento sobre o qual se reporta e sobre o qual o distante não tem como saber o que é, mas é capaz de entender as coordenadas. Trata-se de uma comunicação geral inexata sobre fraturas locais. Se falada de modo ingênuo, torna-se, ou universalista, ou seja, sem razão de ser, ou um esperanto dos sentimentos ruins. Por que então se deveria dar atenção à arte contemporânea? Ora, como uma língua outra, inventa condições de autonomia, seja para encontrar outros falantes, seja para existir para além da comunidade à qual se pertence, confere meios para perceber a realidade de forma incomum, obtendo elementos de contraste, oferece uma via de acesso para a compreensão da melancolia e do evitamento intolerante a ela, contribuindo para o desenvolvimento de formas de autoconsciência. Se não somos imediatamente seduzidos pelo seu ressentimento, ela se torna um idioma precioso para melhorarmos as formas como nos relacionamos e vivemos.

7. Não é justo responsabilizar os idiomas estranhos pela melancolia que nos fazem sentir, talvez nem mesmo pelo ressentimento que despertam em alguns. Não teríamos visto nada sem eles. A maior das derrotas parece se dar ao perdermos a consciência de que é o ressentimento falando, de não nos darmos conta de que se trata de um artifício da atividade e não do mundo mesmo, pelo menos não segundo a ênfase de um sentir negativo em detrimento de todas os outros. É claro que há formas estranhas de ver sem que as toxinas da melancolia sejam tão danosas. Elas parecem ser as mais recomendáveis, mas dela não trataremos. E são a única alternativa, uma vez que é insuportável mergulhar no ressentimento e tê-los todos ao mesmo tempo, como numa torre de Babel. No mais das vezes, esforçamo-nos para aprender uma nova língua em função do desamparo sentido na vivência do nosso próprio idioma. A ironia é que mergulhar no outro, para escaparmos de nós mesmos, do efeito de captura da realidade próxima, ao mesmo tempo em que nos liberta, num certo sentido, faz as vilosidades da melancolia se tornarem mais sofisticadas, com isso, também as do ressentimento. Nada mais sedutor do que um ressentimento convicto. A vantagem da arte contemporânea sobre todas as outras línguas estrangeiras é que nela o ressentimento surge como obra de arte. Ainda que não se goste dela, num primeiro momento, há que se reconhecer a vantagem do mau sentimento elaborado em objeto, poema, e não simplesmente veiculado como discurso. Até porque, os ressentimentos podem até ser partícipes da mesma intolerância à melancolia, mas eles não se equivalem. O momento em que a elaboração torna possível lidar com o afeto para além da sua captação de adeptos, ela se expõe a ter o seu núcleo melancólico conhecido, quem sabe, até mesmo, o seu sentimento negativo inativado. No mundo contemporâneo só a arte contemporânea tem sido capaz disso.



Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política da UFF.

Texto originalmente publicado no “Livro Ibeu 85 Anos” (RJ, Ibeu, 2022)