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Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo - Texto de Cesar Kiraly para a exposição de Rick Rodrigues


1. Aquele tipo de imersão parecia impossível a olhos como os nossos. Olhos como os nossos? Sim, do tipo que buscam a transparência para encontrar a rua, a vida dos outros na superficialidade da passagem. O tipo que não suporta tanto o entorno, enquanto está silêncio. Além de ser de si sobre quem fala. Olhos em que os acontecimentos são motivados por interesses e nada é tudo isso, para o bem e para o mal. Aquele tipo de imersão lhes era possível, apesar de tudo.

2. O título Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo remete à obra do Manoel de Barros. Com ele Rick nos indica que há algo a se compreender no seu trabalho que pode ser atingido de modo incidental, ricocheteando no poeta. As afinidades são imediatas. Ambos privilegiam a expressão por um miúdo universo de partículas sem relevância evidente, ou pré-Manoel. A poesia repleta de sons curiosos e núpcias antinaturais entre animais e brisas, plantas e pessoas e Rick com suas casas à moda de ontem proliferadas em aquecimento afetivo,  metamorfoseadas entre pássaros e quase pessoas. Ora, até aqui não há desvio, as analogias e influências são claras como o dia. Esse caminho fácil nos induz a comer a isca e acabar despistados. Manoel e Rick estão juntos no ínfimo, mas o ínfimo não é isso.


3. A recepção à poesia do Manoel de Barros é curiosa. Ela não recebe a atenção significativa e estável como as do Drummond e Bandeira, ou Eucanaã Ferraz e Marília Garcia, para dar exemplos vivos, mas transitou entre total escanteio, descobrimento entusiasmado, histeria e indiferença cínica pelos poetas. Isso permitiu a ele a independência de tipos obscuros como Lúcio Cardoso e Mario Peixoto, porém com ampla inserção, a partir de certo ponto. Sua poesia não só é lida, como influencia conceitualmente filósofos e artistas visuais, principalmente porque compõe uma densa poética de complementaridade entre significados infantis, loucura e formas de vida aproximadas à terra. Não se trata bem de uma literatura, se é que faz sentido, ecológica, mas da simbiose entre o corpo, a consciência, que se perde, e as coisas, nas quais se desmancha. Ele compõe um plano de pureza infantil no qual afetos, que teriam ficado para trás na urbanização, são passíveis, ainda, de ser encontrados em uma vida mais devagar e atenta aos detalhes, aos restos.

4. Se repararmos bem na dinâmica de Manoel e Rick nos ocorrerá que ela não é onírica, propriamente, nas associações que faz. Não se trata do mundo do sonho, em que imagens são antecipadas para que possamos nos acostumar emocionalmente com elas. Tenderíamos a dizer que os quadros são movidos segundo uma lógica esquizo, como diria o Deleuze. A pictorialidade está nas composições oníricas e nas esquizos, a primeira é sobretudo sobre a cor e a formação da imagem, a segunda, contudo, é sobre a gradação das repetições, pouco importando a novidade. Dificilmente se encontra poeta tão fiel aos seus círculos como o Manoel. O mesmo pode ser dito sobre o Bispo do Rosário, Leonilson, a partir de certo ponto e Pedro Moraleida. Esta individual é menos sobre procurar algo e mais sobre repetir um processo.


5. A dimensão mais ignorada da obra do Manoel, em virtude da ternura provocada pelos seres de sua fauna, é a fina extensão da crueldade a acontecimentos miúdos. O ínfimo é repleto de destruições e acoplamentos deformadores. E pouco ou nada sabemos deles porque somos hipnotizados pela histrionia dos eventos industriais e mecânicos em suas lidas aniquiladoras. A pequena, em beleza, nada deve à grande ruína. O resultado poético não elimina que se trata de encanto pela capacidade de resistência e de sobrevivência. Rick é atento a essa questão ao buscar proximidade com o Manoel. O Manoel do Rick é polimorfo.

6. As séries do bispo do Rosário são diário de uma tortura linda da qual não pôde escapar. Algo semelhante está nos efeitos das máquinas de costura da Diane Sbardelotto. Afinal, Manoel é sobre a devoração de caranguejos e marandovás pelas formigas, a ironia de aceitar ser chamado de imbecil como um elogio, sobre a loucura de se falar o idioma dos urubus e depois ser exilado a viver entre pessoas, ter um olhar distorcido, sobre a possibilidade das pedras deterem “rascunhos de pernas de grilos” e “asas esmigalhadinhas de borboletas” como origem do tingimento azul. Um modo de descrever esse procedimento é dito por Manoel e serve ao trabalho do Rick: “Meu requinte / é chegar à vilezas / com castidade.” A crueldade, pelo animismo, embeleza o mínimo. 


7. Ao comparar a nossa realidade com a dos países europeus em carniçaria, Lobato dizia que não precisávamos invejá-los, primeiro, porque é melhor não ter guerras do que tê-las, pelo menos naquelas proporções, além de que a nossa maneira de nos divertir destruindo seria muito mais bonita. Ao invés de imensos desastres humanitários, a maldade, à época pelo menos, se pulverizaria mínima em eventos. Porque se o mal é menor em tamanho, ele se torna melhor em acabamento. Seria encontrado em quase tudo, não sem lírica, nas miudezas naturais e sociais. Na intensidade, provavelmente, não seríamos nem melhores e nem piores, mas, com certeza, mais minudenciosos em colocá-lo nas relações. Se esse mundo velho não existe mais, pelo menos é possível se compor com ele.

8. Não se costura impunemente. A costura, inclusive à máquina, é uma atividade menor. Mesmo se as costureiras são escondidas, como na produção industrial ou na alta costura, é sempre a costura que está em questão. Os cortes podem ser os mais variados, ela, mesmo sob exploração, insiste, para si ou para outrem, como tentativa de autonomia. É assim nos mantos do Bispo, nos parangolés do Oiticica, nas roupas torturadas da Diane e nos bordados do Rick. Ainda que não seja o ponto, a sutura é de gramática feminina, o início da um jeito de insistir. Deleuze disse Kafka autor de uma literatura menor, por usar um alemão parte cartorial e parte ídiche para reinventar a escritura moderna. Kafka é um suturador menor. É como Rick e seu bordado, compondo-se com as miudezas.



Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política à UFF. Desde 2015 é Curador da Galeria IBEU. Autor, dentre outros, de Fuga sobre o Branco [ ].

A chave de casa - Texto de Cesar Kiraly para exposição de Caroline Veilson

 

1. Apesar das imensas qualidades do romance da Tatiana Salem Levy, importa-nos apenas uma dimensão. Ela aborda o fato dos antigos sefarditas de Portugal, dos quais é descendente, depois da expulsão, no séc. XVI, levarem consigo as chaves de suas antigas casas, na esperança de um dia retornarem. É um tipo de lenda até que descobre que seu tio era possuidor da chave da casa de Lisboa. O livro é muito mais do que isso, porém nos é relevante referir a uma casa que tenha ficado vazia.

2. Vazia não é bem o caso, porque é provável que tenha recebido novos donos. Algo semelhante é descrito por Lanzmann. O comunismo na Polônia assenta um sem número de famílias pobres nas inúmeras casas boas, com saneamento, que haviam ficado sem moradores. A maioria dos novos donos se importavam pouco com a memória de suas novas moradias. Os proprietários agraciados, a não ser de modo muito abstrato, atinente à extrema sensibilidade, não tinham nenhuma responsabilidade pelo esvaziamento das ótimas residências. Afinal, nada mais justo do que a permissão à pessoas sem casa de morarem em imóveis agora sem donos.


3. Dentre as preocupações finais de Derrida esteve o conceito de hospitalidade. O desenvolvimento do tema participou das muitas convergências que buscou com o trabalho do Emmanuel Levinas. Em suma, a hospitalidade é uma bela virtude justamente por causa do seu risco. Ela é quão mais meritória na proporção mesma em que se desconhece o hospedado. A aceitação do abismo significa um novo mundo. Mas e o inverso? A matriz da gravura? Alguém poderia ser hospitaleiro sem antes dizer sim aos donos que se foram? Seria possível dizer sim a quem chega sem dizê-lo a quem saiu? Digamos, ainda estão os entalhos da porta, as marcas no chão dos caminhos mais percorridos, alguns móveis, quem sabe, marcas de prego no batente e objetos. Ou, numa acepção mais esfumaçada, se os traços foram deliberadamente apagados, como hoje se faz, na adequação, ainda restasse uma aura, uma sentença não dita, um eco, um fantasma. Como ficaria? A hospitalidade precisaria receber esse estranho hóspede? Não seria este o verdadeiro abismo? A hospitalidade não teria a sua condição em uma dívida?

4. A Chave de Casa nesta individual da Caroline Veilson não propõe alterar o sentido da hospitalidade e sim o expandir. A questão é receber os obrigados ao deslocamento e os rastros dos deslocados, claramente passíveis de despertar afetividade. A disponibilidade às almas desalojadas é uma bela resposta aos maus sentimentos não mais reprimidos. Aquilo deles que é deixado, torna-se precioso para quem o encontra. É o amor aos vestígios que nos dá um sentido.


5. Não estamos completamente à mercê dos desvãos impostos pela autoridade. A memória, o testemunho e o acolhimento ao estranho dota os seus praticantes de uma bela capacidade de deslocamento. Um curioso modo de ser nômade, portanto. Se não aqui, lá. É possível que o que não puder ser levado seja amado e conhecido. Uma escola prática da necessidade de receber. A coragem de preservar não pode tudo contra a expulsão, mas ela pode muito. Porque se trata de laço ainda mais bem atado do que o familiar. A relação entre a matriz e o papel não é como mãe e filho. Ela é a posição de quem se apropria dos artefatos deixados e os explica aos descolocados que acabam de chegar. A impressão é o outro acolhido e a matriz não é sua família, porém aquele que é portador de objetos que possuem uma história que não é a sua. Ou que é sua por adoção. A matriz é como quem se converte a receber o outro a partir do amalgamado entre o que é seu e o que adotou. Ela é tão somente um amontoado de traços. No somatório afetivo a matriz parece de um outro mundo. Ou pelo menos como pertencente à transição entre mundos.


6. O cabideiro tem que ver com a carnalidade das roupas, a lida comunitária delas em um lugar, mais de uma pessoa, casal, trajes de muitas cores e tamanhos, cintos, gravatas e cachecóis. Como querer um ente tão espaçoso? Ele precisa de entorno, para si e mais os volumes que ostenta. Poderia ser dito uma espécie de meio biombo, uma vez que mata um canto e se alonga. É difícil de imaginar um mundo em que ele pudesse ser colocado no centro de um cômodo, como um totem estranho e primitivo. A mesma coisa para os guarda-chuvas com valor, que podem ser reparados. A chuva nem mudou tanto, como também se molhar nela é mais ou menos a mesma coisa. Muito embora, ele não seja mais um objeto artesanal ou nem quase isso. Não vale mais à pena evitar esquecê-lo, por exemplo, ou dá-lo de presente a quem se estima. A elegância de nele se apoiar há muito se foi e a exibição de seu cabo ornado é sem sentido. O aforismo “eu esqueci meu guarda-chuva” é tão inconveniente, como pretexto para interrupção de um evento, como é ridículo tê-lo como de estimação ou de família. A investigação de um guarda-chuva, como a da Veilson, teria que ser justificada no eixo da reprodutibilidade técnica, como sobre o caráter descartável da mercadoria ou congênere. Aqui não, ela o faz se aproximando das varetas disfuncionais, como quem observa a física perfeita das pernas de uma bailarina em flerte desafiador à anatomia. Importa, positivamente, que ele está todo quebrado. É relevante que tenha sido de alguém e encontrado nos armários desta casa. Acolhê-lo significa sabê-lo de cor, implica repeti-lo em seus detalhes, sempre novos. A coisa se repete com a cadeira como indivíduo. É divertido pensá-la comparada a de Kosuth, que tem uma definição e não um dono ou um portador. Ela poderia ser associada a do Beuys, no que diz respeito à pessoalidade e ao pertencimento, mas menos radical no peso do passado, representado por uma imensa camada de gordura. Não é uma cadeira, mas esta cadeira. Como dicionarizar a definição desta cadeira? Ela é de quem foi embora e também de quem cuida dela. Essa é a razão de ser conservada invertida. Se resgatada fará ainda uma imensa falta. 



Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política à UFF. Desde 2015 é Curador da Galeria IBEU. Autor, dentre outros, de Fuga sobre o Branco [ ].