o livro dAs Passagens
(ao meu amor)
diego não conhecia o mar. Joana caminha pelo mundo tomando para si um papel entre o flâneur e o pesquisador: é uma encantadora de imagens. o pai, santiago kavadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Atenta ao que procura, se permite tocar pelo impensado. viajaram para o Sul. ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Com a série Passagens, Joana alcança liberdade poética inédita em seu trabalho e muito rara na prática de fotógrafos. quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. Método simples: sobrepor imagens encontradas em arquivos, feiras, sebos, antiquários etc. a imagens feitas para esta exposição. Algumas daquelas já carregam originalmente o sobreposto, o recorte, as camadas, as passagens. e foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. Sendo produzida sempre especificamente para o local de exposição, essa série já passou por Buenos Aires, São Paulo e, pela primeira vez, é apresentada no Rio – em Copacabana. e quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - me ajuda a olhar!
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o medo seca a boca, molha as mãos e mutila. É processo muito arriscado. Quando no início, pouco se prevê do fim. o medo de saber nos condena à ignorância; o medo de fazer nos reduz à impotência. São portões, janelas, vitrines, portas, molduras, corredores, quinas, espelhos, claraboias, poços, planos, passagens. a ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. O raio da vida, dessa vez, vem direto de um curto-circuito temporal. agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ter Sigmund Freud para saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória.
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estou lendo um romance de louise erdrich. Tudo, nesta exposição, deve ser visto com tempo e com vontade criativa e delirante. a certa altura, um bisavô encontra seu bisneto. A água trabalha como elemento conectivo de imagens adensadas. o bisavô está completamente lelé (seus pensamentos têm a cor da água) e sorri com o mesmo beatífico sorriso de seu bisneto recém-nascido. Copacabana é acúmulo: de gente, de tempo, de transformação, de esquecidos, do retrofit. o bisavô é feliz porque perdeu a memória que tinha. É do interesse sobre o que está sumindo. o bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória. Há algo de fantasmagórico nisso que morria e toma vida em frente a nossos olhos. eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Há algo de onírico quando o impossível ou o possível virtual é recortado, colado, montado, sobreposto em fantasias de memória autônomas em relação às suas origens. não a quero.
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marcela esteve nas neves do norte. Não são lugares muito vistos em Copacabana. Não interessa o que é registro ou referência visual. Não interessa o reconhecimento do bairro. em oslo, uma noite, conheceu uma mulher que canta e conta. São fotos que morreram para seus autores. Não havendo mais quem se relacionasse com elas, passam por portas ou janelas desse bairro e se dispõem em feiras nas mãos de qualquer um. entre canção e canção, essa mulher conta boas histórias, e as conta espiando papeizinhos, como quem lê a sorte de soslaio. Não é Copacabana como signo de Rio de Janeiro. É o homem como signo de Copacabana. A Galeria de Arte do Ibeu está no cerne desse bairrumano. Cruzamento legítimo de um médico aristocrata Figueiredo de Magalhães com uma virgem de mares tropicais Nossa Senhora de Copacabana. essa mulher de oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Na sobreposição característica, estimula-se a imaginação, a criação de narrativas, a descoberta de segredos, o desvelar paranóico de toda poesia. São imagens que, por somas, multiplicações e anamorfoses, não se permitem ter função objetiva. Elas têm a função afetiva reprodutora que cada um retira das múltiplas potências que elas têm ou apresentam - que vão bem além da capacidade de cada um de nós. dos bolsos vai tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada, uma história de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por arte de bruxaria. Tudo é ícone de gente: muito relógio, muita roupa, muita janela, muito sapato. É muita gente. Copacabana superbacana me engana e encanta em seu muita gente. e assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos. A Copacabana mostrada é uma cidade-ficção quase suprarreal, universal, cidade eterna que volta ao futuro, corre ao passado e é agora o tempo todo. e das profundidades desta saia vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo vai. O interesse em elevar o rebaixado, em estimular o gosto pelo deixado para trás: pessoas, fotografias, lugares – até o próprio hábito de imaginar. É preciso se jogar sobre elas. Imaginar.
Bernardo Mosqueira
(esse texto sobrepõe passagens de "O Livro dos Abraços", 1989, de Eduardo Galeano, a outras elaboradas especificamente para a exposição “Passagens – Copacabana”)