1. A escolha é obscura. A intimidade é definitivamente uma escolha. Escolher é também ser escolhido. Ali também há desvio próprio. Se o contemporâneo tem das suas fobias, digamos que entre elas estão a intimidade e a escolha. A intimidade é tão nua que está vestida. A intimidade é uma escolha: quão mais a ela se teme, é-se menos livre. A sua dinâmica concerne às alternâncias entre o desgaste e o vigor. Não se precisa se dominar os motivos para escolher e não há como escolher sem ser escolhido.
2. Não se pode mais acompanhar William James na afirmação de que a experiência é uma colcha de retalhos. Ele não sabia muito sobre colchas. Se for para buscar reconciliação, então admitamos que há retalhos na experiência, dos quais é feita, mas é tolice achar que se associam como numa colcha. Nela se busca o aproveitamento das sobras e a acomodação, que obriga que os pedaços sejam quase sempre de tamanho parecido; nada mais incomum à intransigência da vida. Nesta, as aproximações são compostas, há escolhas, mas não como quem escolhe uma maçã – que se torna culpado por tê-la podre – mas como quem se aproxima ou se afasta de certo ruído, mesmo sem saber muito o porquê, na maior parte das vezes muito antes de qualquer conveniência. Assim, suas partes são sempre desiguais, a relevância nem sempre concerne ao tempo de exposição e o resultado não é de todo previsível. A intimidade é uma escolha de partes e não de uma finalidade. Ao se dizer a experiência, pode-se aproveitar o retalho, porém a sua lógica remete à colagem.
3. A experiência é uma colagem a partir de pedaços desiguais. Ela é muito pública, por assim dizer. A intimidade é uma das primeiras apropriações que a experiência sofre. Isso faz com que todas as vidas acabem por deter alguma intimidade. Nela não há exatamente algo para se ver. Ela é como o interior, que só o é quando não se o vê. O retalho visto não é a intimidade, mas pode ter intimidade nele. A intimidade é a inevitável posição de penumbra de qualquer um. Nada é intrinsecamente íntimo. A intimidade é o lado escondido do rosto, o corpo dentro da roupa etc. É impossível não esconder algo.
4. Lucena, nesta individual, aprofunda pesquisa sobre a intimidade, iniciada em sua obra premiada na edição de 2016 do Novíssimos. Se antes investia em ambientes fechados, numa lírica do claustro urbano, passou a abranger maior variedade de tipos de vida. As suas escolhas são doces e guardam evidente peso dramático. A pesquisa se inicia com a busca, num sem número de oficinas, às superfícies descartadas de poltronas e estofados. O desejo é pela corrosão causada por nossos corpos nos tecidos. São retalhos desgastados pela intimidade. O pano, eis o peso, serve de duplo da pele, que, junto com a roupa, consumem o envoltório. A artista recolhe aquilo que se soltou das rotinas. As cores dos retalhos são variadas, o plano dos relevos é imprevisível, repleto de ondulações, que nos comunicam preenchimento. Por vezes se fazem reentrâncias, em profundidades diversas, como se pudéssemos estar nelas; noutros momentos há bordas que se tornam levemente escultóricas. As dimensões cobrem as paredes da galeria. O aconchego nos sugere que poderíamos nos precipitar contra elas. A paixão teria como resposta a maciez compreensiva. Se a lógica é de colagem, o estabelecimento é dado pela costura. Aqui um outro peso. Porque a costura dos fragmentos da intimidade é também sutura. Inevitavelmente seríamos levados às cicatrizes, às marcas, aos efeitos comuns da passagem dos dias. Lucena costura pedaços desgastados de experiência, pensando-os como colagem, para que adquiram vigor íntimo.
5. A precipitação pictórica, dissemos, acontece sob a lógica da colagem, com a especificidade, e o peso, dos retalhos serem costurados uns aos outros. Peso afetivo, mas também conceitual, porque a linha de costura, como a de sutura, acaba por estar contida nas questões da escritura, como nos mostra Derrida. Ainda que silenciosa, íntima, é a escrita da costura, assêmica, que mantém os pedaços que Lucena escolhe. Nas situações em que prevê a pintura, a dinâmica é ligeiramente diferente. Nelas há antecipação. Os retalhos associados são pensados para receber pigmento. Eles se relacionam mais com a tinta do que com o entorno. É a cumplicidade íntima que não pode ser vislumbrada. Adianta-se o vínculo cromático, mas, sobretudo, prepara-se uma atmosfera de recepção. Daí a pintura se enraíza no entorno, como trânsito distinto do mesmo processo. Antes formas impuras, depois os retratos e seus objetos de cena. Pode-se notar bem a cumplicidade com o meio, os corpos feitos de tecido. Por isso as pessoas somem em retalhos e esses as continuam, dissipando-as ou as ressoando em harmonia.
6. Pode-se imaginar quem são as pessoas que Lucena retrata. Isso não é importante. É relevante o deslocamento onírico entre uma cena e outra, entre a cumplicidade impessoal dos tecidos e aleatoriedade das escolhas, a mescla da intimidade da artista com as cores e estampas. O fundamental é que não se tratam de biografias. São intimidades e não fatos. A tipologia que se nos apresenta é a da austeridade das pessoas simples, pela retidão fisionômica, a tensão psicológica das que aparecem sozinhas, o relaxamento dos homens brancos, a timidez dos convocados a posar e a indiferença dos adolescentes.
7. A intimidade é o vigor da expressão. Por isso está por todos os lados. Não é preciso dividir a vida com alguém para tê-la. Ela é a intensidade, obtida com o desgaste cotidiano, sendo levada para a expressão, aos enunciados, às iniciativas verbais, corporais, pictóricas etc. Uma recompensa, por assim dizer. Pode-se nomear um evento de íntimo, mas íntimo não é o acontecimento, e sim a tensão que permite acumular. Não ser visto por ninguém é o que o dispara. É impossível não ter intimidade, porque sempre há perspectiva sobre nós que não está sendo percebida. Ela não é invisível, mas sim um inevitável ponto cego, que, por vezes, desprezamos. A intimidade é correlata ao interior, com a diferença que pode ser transportada. A crise contemporânea que a concerne não tem que ver com pessoas sozinhas demais ou de menos ou com exibicionismo, mas com o fato de que há pouco escondido no que se mostra. O paroxismo pode ser explicado: se o íntimo nos é inevitável e a expressão tem sido minguada, só se pode deduzir que se desperdiça intensidade nos momentos errados. A intimidade é uma escolha. É ela que torna o manifesto resistente a ser esgotado, que o permite fazer muito sentido. Porque é uma escolha ter o que esconder, para poder acender aquilo que se resolve mostrar.
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Cesar Kiraly, curador da Galeria IBEU. Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. Autor, dentre outros, do livro Fuga sobre o Branco [ ].