(escultura + vista da instalação)
Revoada
1. As paredes são tomadas. A imaginação aqui persevera e somos revestidos pela matéria áspera. Se há oposição? Ora, não é o liso ou o estriado, mas relevos muito pequenos organizados na pequena ofensa à ponta dos dedos cuidadosos. Para se mover nessa realidade é preciso desprezar um pouco a dor. Protasio precipita a superfície negra por todas as paredes, mesmo a coluna estrutural é envolvida. Há algo bem ameaçador nesse ambiente de lixas apontadas contra o mundo. Se viradas noutra direção, se friccionadas com alguma vontade, reduziriam todas as imperfeições a pó. Se investíssemos contra elas, certamente seríamos interrompidos por gotas de sangue. Sangraríamos antes de podermos vencer a agrura representada por essa forma de céu. Apesar de tudo isso, mesmo desafiando as chances, pássaros dourados cruzam o horizonte.
2. Impossível não lembrar d’A História de Gerhard Shnobble. Nela Will Eisner mostra que Shnobble é um ser humano comum, filho de pais comuns e criado para ser comum. Em seu oitavo aniversário, escorrega do telhado. Ao invés de morrer, flana lentamente até o chão. Seu pai, aturdido, reage dando uma surra no pobre, advertindo para nunca mais voar, magoado, o pequeno esquece da habilidade. Ele cresce e se torna empregado de banco. Depois de 35 anos de trabalho, ao invés de demitido, é transferido à função de guarda noturno. Um dia o banco é assaltado e ele é agredido na cabeça. Como recompensa, é finalmente mandado embora. Sai andando desvalido pela cidade. Aparentemente por causa do golpe que levou, consegue se lembrar que sabe voar. Ele sobe até o último andar de um edifício. Após se jogar no vazio, começa a voar. Nota que ninguém o vê. Faz algumas piruetas e tenta chamar atenção de algum público. É atingido por uma bala perdida. Flutua até o chão e morre. Eisner pede que não fiquemos tristes por Shnobble, mas pela humanidade. Porque ela nunca soube que houve um homem que sabia voar.
3. Não é apenas com negrume que somos envolvidos. Como abraçar um corpo vestido de agressivas lixas que nos recebesse sorrindo? Esperaríamos o imediato nascimento de asas? Seria viável aguardar o compartilhamento dourado? Ou não. Seria, então, como falar sobre o contato dos animais espinhosos no frio? Aproximaríamos o mais que pudéssemos para o calor corporal, sem exageros contudo, pelo perigo da incompatibilidade de espinhos? Sim, é diferente, se o corpo em lixa se aproxima, pode ser que aceitemos parte do incômodo, como dinâmica de cordialidade, desde que seja conhecido, que abrigue todos os bons efeitos da familiaridade, com a qual a experiência nos presenteia e da qual inconscientemente somos devedores. Se o corpo é estranho, se a vida que detém pode ser tergiversada, ora, apenas quem buscasse justamente as lixas toleraria tê-lo abraçado. É assim tão fácil obter calor, de tal forma que se pode dispensar uma sua fonte só porque por ela não temos simpatia?
4. Parece equívoco tomar o ânimo como intrínseco. Nessa conta o mesmo para o inanimado. Quem nos diz não podermos nos confundir? Se admitirmos que a diferença está toda no calor, como prever? Seria o calor o signo do ânimo ou o inverso? Não poderia a fonte de altas temperaturas estar por trás de afiadas lixas, estranhas a qualquer familiaridade? O calor é coisa posta, quem precisa dele o torna presente no corpo do qual se aproxima, um pouco como a beleza. Mas se sempre se precisa do calor, e se a animação é sempre possível, por que pode acontecer de desamparados sermos levados ao glacial? Haveria algo perverso na simpatia? Se sim, poderíamos ser levados a buscar calor onde não há e de ignorarmos que o frio pode ser uma forma de ânimo.
5. Protasio prolifera os pássaros, em matéria que nos evoca as dificuldades da simpatia. Como ser aquecido por lixas? São pássaros de mesma espécie, mas de ruidosa existência singular. Está claro que importa produzir o maior efeito de admiração possível: forçar a impressão. Para isso são feitos pássaros delicados, repletos de pequenos acidentes, em diferentes formações aéreas, são desejados, distanciados dos meios industriais em que são pousados, a tinta dourada, as placas de lixa, cada pássaro é um destino, ainda que se movam paralelos. O dourado industrial não serve para evocar beleza, mas para fazê-los perceptíveis, como ciclistas decididos a cortar o trânsito noturno, ou corredores em maratona pela madrugada, mais ainda, como marcadores em espécies animais ameaçadas etc.
6. Os pássaros são assombrosos. Eles estão quase sempre em bando para que possam se proteger. Ainda assim, se alvos do nosso animismo, se tornam representantes da liberdade. O desejo comum é ter a liberdade de voar como um pássaro. Por outro lado, não sem habitualidade, são percebidos como pragas. Um bando de pássaros famintos devorando lavouras é rapidamente associado à multidões de pessoas destruidoras. Uma nuvem de gafanhotos? Teríamos medo de tais portentos. Ser livre como um pássaro guarda violência assemelhada ao movimento que consome os recursos. Não é comum vestir uma estrutura com roupas de homem para espantar os pássaros? Seria o bando que nos visita o resultado de tal sorte de espanto? Se eles não são daqui, por que não voltam para o lugar de origem? Se assustamos daqui enquanto outros intimidam de lá, quando se daria o fim do voo? A beleza de querer voar como os pássaros é assombrosa, pois consiste em poder se mover sozinho.
7. Os pássaros se movem para onde precisam. Porém acabamos por achar que eles se movem para onde querem. Esse antagonismo nos leva aos espantalhos. Há intensa crueza em se espantar quem chega porque precisa. É justamente por essa urgência que espantar se torna tão problemático. O espantalho precisa ser tão terrível a ponto de obrigar o pássaro a voltar para o lugar de onde necessitava sair. Mais ainda, que os difusos custos de voltar sejam inferiores aos de enfrentar as forças que não permitem ficar. No fim, só rivalizam com os espantalhos as aves que se alimentam de animais mortos. Isso quer dizer que se simbióticas com a morte, o estrato da existência evitado por aquelas que migram, não há porque alguém se dar o trabalho de espantá-las. Elas nada têm a temer.
8. Fios dourados partem do teto e se prendem no chão, como um raio de luz que se expande. Protasio se move com destreza pelo deslocamento da matéria industrial. A função conceitual de tais fachos é não poderem ser atravessados, de interromperem o percurso. Lembram, mas não são luz. Não importa que sejam elegantes no ambiente. O ponto é que só se pode passar por eles se for mais estreito do que a distância entre os feixes. Não é linha imaginária, tão pouco um meridiano. Trata-se de uma fronteira. Não é bem uma gaiola. Porque essa é como se fosse uma prisão. Não há nada de bom na prisão para quem está dentro dela. Bem, salvo em histórias engraçadas, ninguém quer ultrapassar a cadeia para dentro de seus muros ou grades. A fronteira é bem diferente. Ela tenta instaurar ambiguidade onde na verdade só temos ambivalência. Nela se concentra o esforço de se ver a restrição ao trânsito como às vezes boa e às vezes ruim. As boas aves teriam na fronteira um aliado e as más um inimigo. Mas na verdade, as fronteiras são ambivalentes, quaisquer aves, para elas, são boas e más ao mesmo tempo. Como dissemos, mais protegidas estão as duras, de corpo estranho etc. A fronteira as têm como fronteiriças. Ao mesmo tempo boas e ruins, mas necessárias. Não se confundem com um homem que voa.
Cesar Kiraly curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.