A Capital / Gisele Camargo
Não estamos diante de paisagens desabitadas, mas de espaços ansiosos, sempre na imanência de quem os habite, de quem os signifique. Eis uma questão de ponto de vista. Trata-se em reconhecer qual será o nosso: fixo ou móvel, constante ou permutável, distante ou próximo. Aqui, pintura e galeria correlacionam-se mediante a ideia de acontecimento e, pelo breve instante de sua duração, são continuidade uma da outra. Deduzimos, então, que esperam por nós, seja para habitá-las, seja para que nelas tenhamos a percepção de nossa própria presença, reforçando o sentimento de coexistência.
De meros sujeitos contemplativos, somos compelidos a nos tornar olhos-corpos, nos movimentar por esses espaços, aproximar, recuar, inquirir a superfície, buscar detalhes, imaginar. Vertov referiu-se a um cine-olho (kino-glaz), assinalando que a câmera era capaz de capturar algo que a visão humana não apreendia – o que Benjamin posteriormente chamou de inconsciente óptico. Hoje poderíamos falar em ‘olho-cine’, ressaltando um modo peculiar de perceber, registrar e organizar aquilo que nos cerca. Através de nossos olhos, passamos a ‘cinematizar’ o mundo.
Alguma coisa da ordem da relação entre pintura e cinema, já presente em outras pesquisas de Gisele Camargo, transparece de modo mais intenso em A Capital. A escala ampliada dessas pinturas, juntamente com seu horizonte alto, assinala a passagem de um descontínuo posicionar-se diante da paisagem: ora estamos distantes, ora pisando no mesmo solo, ora olhando tudo através de um ponto de vista de sobrevoo. Estamos rodeados por alguma coisa que acontece ao mesmo tempo, mas da qual só podemos apreender um instante a cada vez. Não é pintura em plano-sequência, como nos antigos panoramas, mas um mundo conscientemente editado, fragmentado, construído por camadas, enquadramentos, ângulos e elipses, e mesmo assim, um mundo tão real quanto aquele que está ‘lá fora’.
Representação e realidade coexistem. Uma não antecede a outra, pois ao mesmo tempo em que percebemos o mundo, o imaginamos. Assim, a representação só pode ser a continuidade daquilo que anteriormente é uma subjetivação de tudo que nos cerca. Construir a imagem é construir a realidade. Eis aí o momento em que nós, no ato de observar (capturar), compartilhamos com a artista a capacidade de apreensão, elaboração e significação daquilo que transcende a mera forma, a mera superfície da imagem. Artista e espectadores, somos todos um pouco criadores.
Ivair Reinaldim / outubro de 2011