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Montparnasse, vingt ans après - Texto de Cesar Kiraly para a individual de João Paulo Racy


1. Em Num Ano de 13 Luas, do Fassbinder, de 1978, há uma cena em que uma mulher esconde-se, com comida e vinho, no andar em obras de um edifício. Ela dorme no chão, atrás de um móvel, e o ambiente possui a incidência da luminosidade normal da rua, mais outra, vermelha, que acende e apaga remetendo a um janelão sem cortina. Um homem negro entra com um caixote e uma corda e a tudo prepara para se enforcar. A mulher acorda, mexe na bolsa, e pergunta se o inesperado tem fogo. Ele desce, acende o cigarro dela e os dois iniciam uma conversa. Ela fala de si, ele bebe, e pergunta o motivo de querer se enforcar, o homem responde que não quer a realidade das coisas, tais como sentimentos, imagens, cartas, memórias etc. coisas em geral, apenas porque as percebe, ela conta que seu ego foi forçado a aprender a aguentar o insuportável e ele diz que o destino humano é todo muito claro, como na justiça eterna, como num eterno juízo final, o suicídio não seria a negação da vida, mas, sim, das condições de sua própria vida. Parecendo cansada, a mulher se afasta dizendo que talvez fosse melhor que o fizesse logo, e se esconde no cantinho.

2. A imagem do encontro do Racy com o andar em que se infiltrou para fotografar, os momentos de imiscuimento no abandono das peças de escritório, para a imaginação dos objetos cúmplices, o funcionário do qual, com certeza, teve que se desviar, a conversa surreal que com ele teve que ter, a clareza metafísica da obra do Gursky, cuja perspectiva, em versão terrena, procurava, e os esconderijos do modo como pratica seu próprio trabalho, por motivos variados, remetem-me à versão menos dramática, mas substantivamente analógica ao diálogo do Fassbinder. Gursky como alguém que vê a realidade como platitude e Racy como quem recebe a complexidade da resposta e ao mesmo tempo se dá conta que não há muito mais o que dizer para quem se convenceu tão bem. 


3. É tão confusa e tensa a relação entre conservação e mudança. Pode-se desejar até que a lógica produtiva mesma seja mudada. Nesse caso, dizem, há um trânsito da transformação, mais rápido ou mais lento, que se parece, ainda que com pessoas diferentes, donde o ressentimento, com o mundo que se conhece. As alternativas mais comuns, entretanto, carecem de alguma realização. Um mundo significativamente diferente, mas de mesma lógica, no qual se gostaria de viver, demanda que a novidade não suspenda a viabilidade do que se quer manter, sabendo que tais acomodações, salvo em situações muito evidentes, só se mostram mesmo depois do estrago feito. Assim é mais simples ver o despropósito que é a iniciativa por um mundo que não existe mais ou de uma idéia muito estrita para uma nova lógica. A restauração é uma mentira melancólica e a transformação uma frustradora de ideais. A ansiedade pelo novo só é crível se for a mesma que pelo desconhecido. Se não, só é razoável mudar para manter o que se tem, mesmo que adquirido por acidente.

4. Sartre costumava se perder naqueles infindáveis andares do Mouchotte. A impressão que lhe causava era a de um formigueiro do qual saíam, em 1968, um sem número de pessoas dispostas a ocupar as ruas. Por isso se referir a ele como prédio vermelho. Depois das capturas históricas ocorridas, sabe-se bem, com ironia, o sentido de qual ou tal multidão. Aquelas pareciam ser a sua própria realização da profecia. A vontade manipuladora está convencida que o sentido da multidão está na bandeira que traz pronta de casa. Então, se os leitores de domingo nomeiam as revoltas, sábios parecem ser os que saíram por se sentirem fechados e que aproveitam o passeio a despeito do nome que vai receber. Não se deve poder capturar o sentido da caminhada em conjunto.

5. Gursky usa descomunais meios de produção para atingir a harmonia. Ela não pode ser obtida apenas por distanciamento, é preciso artifício. A dimensão permite que cada ente mantenha individualidade: janelas, pessoas, embalagens, flores etc. A ilusão é mostrar o estriado como uma subespécie do liso, indicando o aberto como uma condição. Não há que se falar em encontro da elegância no acidente. Trata-se da paciente perspectiva do relojoeiro. 


6. Racy encontra a perspectiva para mostrar efeito assemelhado a Montparnasse, Paris. As interrupções não são removidas e nem a amplitude é simulada. O prédio vermelho perde a platitude. As perspectivas não são anuladas, na verdade, são acumuladas e podem ser contadas. As janelas passam a ser percebidas de dentro de uma janela em um cômodo em reconstrução. A linha reta existe se tornada compatível com intermediários e concorrentes. A história para Racy é acidente e nos leva a pensar no esforço que é não vê-lo.

7. Não se trata mais de simular uma fachada contínua, porém de mostrar, tal como a encontra, a perspectiva interna de uma janela diante de outras tantas, invariavelmente interrompida pela emenda da vidraça. As fotografias refazem a formalidade elegante da observação exterior, mas agora em ambiente de renovação entre o uso antigo, de um aparente escritório, do café frio esquecido, e o desconhecido que começará a ser montado. O interesse é registrar, como intruso, que a interioridade não perde sua perspectiva privilegiada sobre o que acontece fora, e que, mesmo repleta de antigos usos, não precisa esconder a si própria.  


8. Em Torno, livro de Racy, ajuda-nos na comparação também com a sua fotografia de espaço aberto. A maioria das imagens se torna densa nas convergências formais. A composição não está lá e faz sentido ir lá procurá-la. Não há um aberto completo para Racy. O aberto nada mais é do que um efeito de fuga da imaginação a querer respirar no acúmulo gótico de prédios e detalhes.

9. Não é segredo para ninguém que o espaço urbano no capitalismo abriga plêiade de paroxismos. Há extrema demanda por destruição, para abrigar a novidade, mas, também, residualmente nos países periféricos, vontade de conservação, pelo reconhecimento de que o passado, por vezes, tem algum valor. Um descompasso entre o dentro e o fora das construções começa a se consolidar. Ambientes internos são renovados curiosamente estranhos aos seus exteriores. O susto causado pelo arrojamento porta adentro só se aprofunda, uma vez que o refazimento se torna regra e há cômodos que mais se reformam do que envelhecem. Se envelhecido, na verdade, foi simulada a passagem do tempo. Porque a decadência mesma se torna inadmissível.


10. A convergência entre o dentro e o fora encontra na fotografia feita em antigas repúblicas soviéticas um último suspiro. Nelas, descascados papéis de parede de cosmonautas adornam o dentro de imensos edifícios de concreto. Eles são arrojados até mesmo no tipo de sofrimento explícito da ação do tempo, conjugado com a falta de uso. Mais do que isso, apenas o dentro e o fora em perfeita continuidade dos vazios pontos de ônibus do Cazaquistão. Sem as vaquinhas à sombra seria quase impossível descobrir o uso da construção sem legenda. Racy não monitora a melancolia do desabamento do concreto. Mas não é completamente estranho a tal sentimento. Porque ele percebe que na nossa temporalidade é preciso procurar a improvável persistência da passagem do tempo nas paredes. Quando não, a angústia aparece sem querer. Ele vai nas passagens mais elegantes dessa psicopatologia da vida cotidiana das coisas. Se a regra é a precariedade ou a reforma, no ato falho da espera entre esta e aquela intervenção, a falta de hospitalidade é vencida pela invasão.


Cesar Kiraly é professor de Teoria Política e Estética no Departamento de Ciência Política da UFF. Autor de Escarificação: ensimesma. Curador da Galeria IBEU.