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Texto de Jozias Benedicto para a individual de Renata Nassur

 


Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia (...)

Sirvo para que as coisas se vejam.

Sophia de Mello Breyner Andresen


O deslumbrado espanto de quem percebe as coisas pela primeira vez – este é o motor do processo criativo do artista, do adulto que soube permanecer criança ao preservar (ou recuperar) aquele dom da primeira visão. O trabalho de Renata Nassur é feito deste deslumbre, deste “espanto silencioso”, no dizer da artista, aliado à técnica delicada e à precisão conceitual.

Para Renata, “nem tudo que se vê é o que parece à primeira vista” e continua: “gosto de pensar sobre isso enquanto desenho, no encantamento de olhar para algo pela primeira vez”. Na Galeria Ibeu, a artista nos apresenta desenhos, pinturas e um vídeo que tecem o “fio invisível” de sutil narrativa, tratando das questões que deixam perplexas as crianças e atravessam o universo dos adultos: a realidade e a representação, o tempo, a efemeridade das coisas, a memória e o apagamento.

O olhar do espectador é capturado pela pequena pintura a partir da foto 3x4 de uma carteira de trabalho dos anos 1970 – a carteira de trabalho do pai da artista. Retrato de família, mas também um retrato da época, de um Brasil que se modernizava e onde a carteira de trabalho significava o salvo-conduto para uma vida melhor, para o futuro ao alcance das mãos, para o “em se plantando, tudo cresce e floresce”.


Não sabemos quantas esperanças ficaram para trás em quantas carteiras de trabalho como a que Renata afetuosamente replica nesta pintura. Como também não sabemos quantas desesperanças estão contidas nas aquarelas feitas a partir de recortes de jornais: os obituários e os anúncios de classificados de garotas de programa – a fama ao alcance de todos em um jornal de grande circulação, mesmo que somente na hora da morte ou no momento em que o corpo vira mercadoria. Ao transformar em arte o trivial, o sem qualidades, é como se a artista nos repetisse para não esquecermos: lembra-te que és pó e ao pó retornarás.

Na série “Verso”, cartões postais antigos comprados em lotes pela internet são replicados pela artista em minucioso trabalho de aquarela – apenas os versos dos postais, sem as imagens que poderiam dar sentido “estético” à apropriação, exibidos ao espectador como fragmentos de um ininteligível romance à clef: Quem é Gil, que recebeu o cartão?, quem seria Roger, que escreveu de Segovia “com um pouco de humor”? quem é Anna Karina, que logo iria dançar “El Tango”?, quem somos nós, espectadores, que tentamos criar histórias, dar sentido a fatos aleatórios?


A dicotomia entre o efêmero e o eterno se faz presente também no diálogo entre duas séries: as nuvens e as pedras portuguesas. Estas últimas são aquarelas feitas a partir da coleta e observação de pedras retiradas do calçamento no caminho diário da artista para seu ateliê. Para as nuvens, a observação de Renata se volta para a grande arte, a pintura de paisagem dos séculos XVII a XIX, e a artista “recorta” detalhes de nuvens, reproduzindo-as em pinturas a óleo sobre tela em pequenos tamanhos.

Esta percepção da finitude está exacerbada no vídeo, que a artista produziu no tempo do isolamento pela pandemia da covid-19. Aparentemente nada se move na tela, talvez o vento, talvez os fantasmas, talvez aquele vulto rápido seja a senhora da foice ou talvez uma impressão apenas ou um defeito da câmera. Talvez. Talvez seja tudo apenas isso, impressões, como as esperanças nas carteiras de trabalho, nos anúncios das garotas de programa, na crença de eternidade nos obituários, nas nuvens que se desfazem na segunda passagem de olhos, nas pedras que, sólidas, também se desmancham no ar.

A artista nos diz com sua arte o que nos escreveu a poeta: “sirvo para que as coisas se vejam”. E ao ver as coisas com o olhar de Renata, os objetos vulgares ganham a verdadeira vida, aquela que não é feita de decadência, morte e esquecimento e sim de perenidade.


Jozias Benedicto
Escritor, artista visual e curador