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Antebraços - Texto de Cesar Kiraly para a individual de Stella Margarita


1. Há algum tempo se tem falado do entre-lugar. Nem saída e nem chegada, na verdade, é até muito mais comum do que ambos, no mais das vezes é onde se está. O entre-lugar é a passagem. Noutros tempos era mais comum se conhecer alguém entre destinos, porém nunca foi trivial fazê-lo. A regra é que seja de todos e de ninguém, por isso a associação direta com o risco.

2. Não é sem razão que se admite que a passagem é relativa. Afinal alguém pode passar pelo que não é passagem para o outro. Por esse motivo se pode apontar no mundo pontos habituais de trânsito. O entre é a condição existencial de quem se move. Mais ainda, habita-se, ao mesmo tempo, inúmeras situações de deslocamento. A mais simples de ser percebida é a corporal, física, por assim dizer. Não importa o percurso, abstratamente, a passagem está do lado de fora, mais fora do que outras vivências. Nessa monta é que implica em risco.

3. A pronta analogia é com a rua. Se estamos nela é porque saímos de um ponto e nos deslocamos para outro: eis o risco. Em certa sorte, em trânsito, estamos à mercê. Ao mesmo tempo é fora que a vida é mais interessante. As vias do aprofundamento são arriscadas, porque nelas é que nos perdemos, somos capturados etc. Não há gosto sem ter estado do lado de fora, sem desamparo. Quão mais familiar, menos passagem. Há quem se habitue com ambientes perigosos, por mais que demandem mais tempo e o escavamento ofereça imensas recompensas, uma hora deixa de ser entre. Uma sala de chá pode ser a passagem mais arriscada do mundo. A experiência do risco implica a mesma dinâmica na vida da imaginação.

4. Não lembrava de ter essa lembrança. Será que estava imaginando? Mas qual é a diferença? Apenas olhava dentro de si e se sentia do lado de fora. Se percebia menino, sonolento por causa do movimento do carro. O dia bastante quente, sol em raios por todos os lados, amenizado tão somente pelo vento que entrava pelas janelas abertas, por causa do movimento. Aquela ventania lhe interrompia o enjoo, mas não completamente, era levado a se sentir entre bem e mal. Ao volante um homem de pouco mais do que trinta anos. Os cabelos compridos e escuros compostos com a barba também comprida e escura. A sua atenção era dividida entre a rua, que podia ser vista através de um buraco no centro do assoalho, e o antebraço do motorista apoiado, queimado pelo sol, como a denunciar o hábito de apontar o cotovelo para fora do fusca.

5. Antebraços não são bem uma parte do corpo. Eles estão entre as mãos, repletas de identidade, componentes do braço, e o braço propriamente dito. A ausência da mão não protagoniza o antebraço, além do que, é impossível, salvo melhor juízo, tê-lo sozinho. A comparação com os segmentos da perna torna a incompreensão ainda mais explícita. Há toda uma elegia de coxas e panturrilhas de homens e mulheres. Não se compõem poemas aos antebraços. À pesquisa da Stella eles são fundamentais. Acreditamos que são para o corpo, tal como ela o tem concebido, o que as passagens são para o mundo, a parte mais ousada do movimento.      
    

6. A consequência, tal como empreende Stella, de seguir os antebraços, é formidável. Porque eles não são nem comportados ou histriônicos. Não importa se não estão explicitamente presentes em todas as telas, ou modo como são retratadas as situações, é neles que a atenção repousa. Não são movimentos comuns. Nem caminhadas ou a espera de alguém. Não concernem à dança ou qualquer expressão evidente. As qualidades buscadas por Stella estão entre o cênico e o cotidiano. Há espontaneidade nos gestos escolhidos. A performance nem posa e nem busca o drama. As questões abordadas independem do estresse e do conflito para serem reveladas.

7. Os antebraços estão no centro das atividades a dois e de outras tantas em que os corpos se tocam, porém não se trata nem da luta e nem da relação sexual. A pressão que um corpo faz no outro não concerne à provocação de sofrimento ou prazer. Trata-se da tomada de consciência, tão somente, de que a dor existe no mundo. E que, por isso, não se pode lidar com ela, como se fosse qualquer coisa, é preciso tensão, firmeza entre dois, para tê-la aparecida, mas nada além disso, e nada de exibição.

8. A pintura que Stella está fazendo comunica que ela encontrou a liberdade no mundo. O estabelecimento das imagens não demandam especial violência, há ajustes, é claro, mas ela sabe o que quer e se move intuitivamente nessa direção. O formato, raramente pequeno, possui uma função importante, porque é o caso de mostrar a descoberta à vontade, com movimentos amplos. As figuras jovens podem até derreter, mas, antes disso, sugam todo o fundo e qualquer concorrência que não a forma humana, porque dizem respeito aos desafios das afinidades eletivas, de ter um par. Elas não podem ter cenário, a única situação é a de confiar a própria dor ao outro. Estar entre. As roupas trazem como que uma precariedade universal, poderiam ser usadas pela maioria das pessoas, em qualquer tempo, se investidas no ofício de ser livre. A liberdade é precária, é um ensaio, justamente, porque consome o tempo de quem a vive.

9. A pintura dos antebraços, da Stella, não precisa de tanto relevo na matéria, apenas de alguns aparecimentos pictóricos improváveis, um rasgo cromático aqui e ali. Isso porque a questão é mais extensiva do que rugosa. Além do que são telas que crescem com a luz natural. Ao que seriam machucadas, como em todo exercício da liberdade. Mas como se a compreende aqui? A liberdade não podia deixar de ser um antebraço. Inevitavelmente carrega um prefixo de resistência. Porque é uma passagem, ora, plena de riscos, mais físicos que morais, porque só pode ser vivenciada entre. Não é nem fim e nem meio. Ela implica na exploração consciente da dor do outro, na medida em que este o permite, na resistência, posto também estar em trânsito. À diferença da crueldade, não é tarefa de um só.


Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.

Olho D'Água - Texto de Cesar Kiraly para individual de Juliana Borzino


1. Há outra expressão com significado parecido ao olho. O umbigo do sonho (Nabel des Traums) remete à dinâmica parecida. Trata-se de um ponto a partir do qual a decifração converge, apesar de ser misterioso. É Freud que fala dele, em sua Interpretação dos Sonhos. No caso da água / do seu olho / se encontrado, fornece a referência do movimento, das correntes, das marés etc. Mas ele mesmo se nos escapa. O sonho, como o mar, nada mais é do que um agregado, aparentemente infindo, de moléculas pictóricas. Se descritas, pode ser que nelas se encontre um umbigo por debaixo das camadas, uma região a partir da qual a aliança entre as partes, e a continuidade do movimento, dão-se a explicar.

2. Num primeiro momento se poderia tomar pela irrelevância de tal descoberta. Esse equívoco seria praticado por quem considera trivial encontrar o olho ou o umbigo. Não entendem a beleza deles. É isso que os torna fascinantes, se distantes do mar ou do sonho, o olho ou o umbigo podem estar em qualquer lugar. Não é possível empregar uma tabela ou um detector para os encontrar. Nada senão lidar como o mar e o sonho tal como se apresentam.

3. Temos razão para crer que sempre há um olho e um umbigo, por mais insignificantes que sejam as manobras sobre as quais se encontram. Nessa direção, é prudente tomar o desencontro como uma incapacidade de quem descreve. Além disso, é evidente que não há autoridade. Não existe, propriamente, algo como o Meu mar ou o Meu sonho, que daria ao proprietário precedência para encontrar o próprio olho ou umbigo. Nada é mais público do que a água em movimento ou o encadeamento onírico, e a habilidade para os determinar deriva do imiscuimento no amálgama respectivo, sendo que o mais importante é a disposição / uma vez que cada mar é um mar, cada sonho é um sonho. A experiência ajuda, mas não resolve.

4. Os rios e os sonhos são repletos de enigmas ao observador habituado, quanto mais àquele que ainda fabrica um olho. Isso porque olhos e umbigos podem ser feitos de outros tantos olhos e umbigos. Por isso a análise é sempre relativa ao que se descobre. A individual que, saborosamente, devia ser chamada a coletiva da Juliana Borzino, distribui-se na ênfase à essa característica, são inúmeros pequenos sonhos, completos, que ainda podem ser reunidos como partes de um mais extenso. A maneira como são distribuídos às paredes nos evoca a expansividade de boreais; boreais que podem ser tomadas como esfumaçamento de partes indiscerníveis, que, por outro foco, podem ser isoladas como pequenos olhos. Se quisermos, ainda na forma de um Atlas de quarto.


5. Os fragmentos são feitos de partes menores. Estas são colecionadas, por Borzino, com a incrível paciência daqueles que sabem o que procuram. A intuição que temos é que ela inconscientemente reconhece momentos oníricos nos pequenos pedaços de papel. Por isso a coerência de compô-los conjugados com frases enigmáticas ou mesmo letras, em momentos tipográficos ou carimbo, que dão algum umbigo ao sentido. Nisso ela sabe muito bem separar a parte da representação que a importa e a retira do âmbito literal. É quase impossível remontar a origem trivial das porções que entende suas. Os despojos que aproveita perdem o endereço. As colagens, basicamente papel sobre papel, são delicadamente formais no modo como são resolvidas em suas miudezas, porém explicitam o campo afetivo e político do qual participam. Borzino o faz por uma espécie de poesia avulsa, como obtida ouvindo conversas na rua. O tom aquático, das ondas no vídeo, acabam por emprestar o clima de repetição. Além disso, é notável a função das fitas adesivas, de diferentes cores, que às vezes se sobrepõem às colagens e noutras se tornam sólidos de harmonia na composição. Inclusive, são elas que prendem os trabalhos à parede.

6. O olho, que pode estar, inclusive, no mar, e o umbigo, apesar das diferenças, são órgãos metafísicos. Isso quer dizer que atendem à sorte de perversão que os permite surgir aonde for. Eles são possíveis porque a experiência, no que a segue a linguagem, é predominantemente onírica. Isso quer dizer que nos acontece muito mais do que nos damos conta, que percebemos mais do que sabemos estar, e podemos dizê-lo em virtude dos momentos em que estamos menos reprimidos, como quando dormimos ou criamos. Daí acabamos por nos dar conta do que nos escapou. Ora, sonhamos com o que vivemos e ao fazê-lo realizamos a extensão do que não dávamos conta. Não há nada mais público e mais particular do que os sonhos. Arrumamos à nossa própria maneira aquilo que pode ser percebido por qualquer um. Ademais, sonhando, corrigimos o efeito da repressão sobre a realidade, pois o sonho reapresenta como imagem aquilo que foi interpretado como outra coisa, ele repõe a percepção pelo modo como aparece.

7. Borzino se move bem pela recolha não reprimida de elementos pictóricos e pela reapresentação deles, respeitando a intensidade da lógica interna que persegue: o umbigo ou o olho. No cultivo do próprio gosto pelo onírico, ela revisa toda uma vocação de artistas do arquivo, da memória, arqueólogos do passado etc. Não é preciso dizer que a diferença entre o sonho e o passado é de intensidade e não de substância. Os artefatos do passado são também os do sonho. O nosso entusiasmo se deve a Borzino realizar, com raro sucesso e insistência, uma pesquisa sobre o onírico, sem se dedicar a certo arquivo específico, a oniricidade de suas colagens e vídeos é quase intransitiva.


Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.