1. Há outra expressão com significado parecido ao olho. O umbigo do sonho (Nabel des Traums) remete à dinâmica parecida. Trata-se de um ponto a partir do qual a decifração converge, apesar de ser misterioso. É Freud que fala dele, em sua Interpretação dos Sonhos. No caso da água / do seu olho / se encontrado, fornece a referência do movimento, das correntes, das marés etc. Mas ele mesmo se nos escapa. O sonho, como o mar, nada mais é do que um agregado, aparentemente infindo, de moléculas pictóricas. Se descritas, pode ser que nelas se encontre um umbigo por debaixo das camadas, uma região a partir da qual a aliança entre as partes, e a continuidade do movimento, dão-se a explicar.
2. Num primeiro momento se poderia tomar pela irrelevância de tal descoberta. Esse equívoco seria praticado por quem considera trivial encontrar o olho ou o umbigo. Não entendem a beleza deles. É isso que os torna fascinantes, se distantes do mar ou do sonho, o olho ou o umbigo podem estar em qualquer lugar. Não é possível empregar uma tabela ou um detector para os encontrar. Nada senão lidar como o mar e o sonho tal como se apresentam.
3. Temos razão para crer que sempre há um olho e um umbigo, por mais insignificantes que sejam as manobras sobre as quais se encontram. Nessa direção, é prudente tomar o desencontro como uma incapacidade de quem descreve. Além disso, é evidente que não há autoridade. Não existe, propriamente, algo como o Meu mar ou o Meu sonho, que daria ao proprietário precedência para encontrar o próprio olho ou umbigo. Nada é mais público do que a água em movimento ou o encadeamento onírico, e a habilidade para os determinar deriva do imiscuimento no amálgama respectivo, sendo que o mais importante é a disposição / uma vez que cada mar é um mar, cada sonho é um sonho. A experiência ajuda, mas não resolve.
4. Os rios e os sonhos são repletos de enigmas ao observador habituado, quanto mais àquele que ainda fabrica um olho. Isso porque olhos e umbigos podem ser feitos de outros tantos olhos e umbigos. Por isso a análise é sempre relativa ao que se descobre. A individual que, saborosamente, devia ser chamada a coletiva da Juliana Borzino, distribui-se na ênfase à essa característica, são inúmeros pequenos sonhos, completos, que ainda podem ser reunidos como partes de um mais extenso. A maneira como são distribuídos às paredes nos evoca a expansividade de boreais; boreais que podem ser tomadas como esfumaçamento de partes indiscerníveis, que, por outro foco, podem ser isoladas como pequenos olhos. Se quisermos, ainda na forma de um Atlas de quarto.
5. Os fragmentos são feitos de partes menores. Estas são colecionadas, por Borzino, com a incrível paciência daqueles que sabem o que procuram. A intuição que temos é que ela inconscientemente reconhece momentos oníricos nos pequenos pedaços de papel. Por isso a coerência de compô-los conjugados com frases enigmáticas ou mesmo letras, em momentos tipográficos ou carimbo, que dão algum umbigo ao sentido. Nisso ela sabe muito bem separar a parte da representação que a importa e a retira do âmbito literal. É quase impossível remontar a origem trivial das porções que entende suas. Os despojos que aproveita perdem o endereço. As colagens, basicamente papel sobre papel, são delicadamente formais no modo como são resolvidas em suas miudezas, porém explicitam o campo afetivo e político do qual participam. Borzino o faz por uma espécie de poesia avulsa, como obtida ouvindo conversas na rua. O tom aquático, das ondas no vídeo, acabam por emprestar o clima de repetição. Além disso, é notável a função das fitas adesivas, de diferentes cores, que às vezes se sobrepõem às colagens e noutras se tornam sólidos de harmonia na composição. Inclusive, são elas que prendem os trabalhos à parede.
6. O olho, que pode estar, inclusive, no mar, e o umbigo, apesar das diferenças, são órgãos metafísicos. Isso quer dizer que atendem à sorte de perversão que os permite surgir aonde for. Eles são possíveis porque a experiência, no que a segue a linguagem, é predominantemente onírica. Isso quer dizer que nos acontece muito mais do que nos damos conta, que percebemos mais do que sabemos estar, e podemos dizê-lo em virtude dos momentos em que estamos menos reprimidos, como quando dormimos ou criamos. Daí acabamos por nos dar conta do que nos escapou. Ora, sonhamos com o que vivemos e ao fazê-lo realizamos a extensão do que não dávamos conta. Não há nada mais público e mais particular do que os sonhos. Arrumamos à nossa própria maneira aquilo que pode ser percebido por qualquer um. Ademais, sonhando, corrigimos o efeito da repressão sobre a realidade, pois o sonho reapresenta como imagem aquilo que foi interpretado como outra coisa, ele repõe a percepção pelo modo como aparece.
7. Borzino se move bem pela recolha não reprimida de elementos pictóricos e pela reapresentação deles, respeitando a intensidade da lógica interna que persegue: o umbigo ou o olho. No cultivo do próprio gosto pelo onírico, ela revisa toda uma vocação de artistas do arquivo, da memória, arqueólogos do passado etc. Não é preciso dizer que a diferença entre o sonho e o passado é de intensidade e não de substância. Os artefatos do passado são também os do sonho. O nosso entusiasmo se deve a Borzino realizar, com raro sucesso e insistência, uma pesquisa sobre o onírico, sem se dedicar a certo arquivo específico, a oniricidade de suas colagens e vídeos é quase intransitiva.
Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.
6. O olho, que pode estar, inclusive, no mar, e o umbigo, apesar das diferenças, são órgãos metafísicos. Isso quer dizer que atendem à sorte de perversão que os permite surgir aonde for. Eles são possíveis porque a experiência, no que a segue a linguagem, é predominantemente onírica. Isso quer dizer que nos acontece muito mais do que nos damos conta, que percebemos mais do que sabemos estar, e podemos dizê-lo em virtude dos momentos em que estamos menos reprimidos, como quando dormimos ou criamos. Daí acabamos por nos dar conta do que nos escapou. Ora, sonhamos com o que vivemos e ao fazê-lo realizamos a extensão do que não dávamos conta. Não há nada mais público e mais particular do que os sonhos. Arrumamos à nossa própria maneira aquilo que pode ser percebido por qualquer um. Ademais, sonhando, corrigimos o efeito da repressão sobre a realidade, pois o sonho reapresenta como imagem aquilo que foi interpretado como outra coisa, ele repõe a percepção pelo modo como aparece.
7. Borzino se move bem pela recolha não reprimida de elementos pictóricos e pela reapresentação deles, respeitando a intensidade da lógica interna que persegue: o umbigo ou o olho. No cultivo do próprio gosto pelo onírico, ela revisa toda uma vocação de artistas do arquivo, da memória, arqueólogos do passado etc. Não é preciso dizer que a diferença entre o sonho e o passado é de intensidade e não de substância. Os artefatos do passado são também os do sonho. O nosso entusiasmo se deve a Borzino realizar, com raro sucesso e insistência, uma pesquisa sobre o onírico, sem se dedicar a certo arquivo específico, a oniricidade de suas colagens e vídeos é quase intransitiva.
Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.