Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia (...)
Sirvo para que as coisas se vejam.Ao examinarmos com vagar os desenhos e pinturas que Henrique de França nos apresenta nesta sua mostra, o que nos chama a atenção e nos envolve silenciosamente não é apenas a beleza formal e a técnica primorosa e sim um estranhamento, como se uma fresta se abrisse e através dela irrompesse o inesperado: algo que está lá, mas não está; ou algo que não está lá, mas está.
Um breve momento e esta fenda se fecha, a beleza das pinturas e desenhos volta a acariciar nossas retinas, até a abertura de nova fresta. Não é uma sensação desagradável, pelo contrário: é como se a visão de outro universo, com regras próprias, levasse nossas mentes a uma viagem da qual retornamos mais vivos. É como se os trabalhos do artista também estivessem vivos e nos convidando a viajar em seus mundos, nos propondo diálogos infindáveis.
Esta janela para novas realidades é um estranhamento no sentido em que Freud descreve, o Unheimliche, que faz referência ao que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu. E assim chegamos ao papel do acaso, do estranhamento dos personagens de Milan Kundera ao constatar que inúmeros acontecimentos importantes em suas vidas – na vida de todos nós – não são fruto do livre-arbítrio, de ações deliberadas e sim do simples acaso. Nos trabalhos de Henrique de França o acaso se faz presente a partir do processo adotado pelo artista na construção de seus desenhos e pinturas.
Henrique utiliza como matéria prima imagens de fotografias antigas de álbuns de família, isolando elementos de fotos diferentes, de tempos e lugares diversos e os recombinando em novas imagens, em novas narrativas; o papel do acaso é fundamental ao guiar – ou a libertar – o artista nestas montagens. Segundo ele, “sempre deixando algo talvez fora do lugar, um elemento narrativo estranho e aberto, que confunda realidade com sonho, uma pergunta sobre o que aconteceu ou está para acontecer na imagem. O momento retratado busca ser o frame intermediário de algo além do que está na imagem”. Ao escolher a frase do escritor tcheco como título de sua exposição, Henrique busca “evidenciar esses encontros levianos de imagens de diferentes fontes, mas que podem tomar um peso maior à medida em que se configuram em novas e velhas histórias.”
Nos desenhos, o artista emprega lápis sobre papel e relata: “uso uma variedade de lápis, desde os mais duros até os mais escuros, e os papéis são brancos, mas não totalmente alvos, eles têm esse aspecto natural e que se assemelha, inclusive, ao branco esmaecido dos papéis das fotografias antigas. Neles eu busco trabalhar o vazio, além de explorar espaços negativos e interrupções”.
Já nas pinturas, o que chama a atenção é uma camada de tinta azul que as finaliza. Além das referências à História da Arte, do lápis-lazúli e dos mantos das Virgens do Renascimento até o azul de Yves Klein – podemos ver neste azul um “arremate” do estranhamento, como se o Unheimliche, após vazar pelas frestas das paisagens e narrativas, se espalhasse pela superfície pictórica – “um véu transparente” – reiterando ao espectador: você está aí e eu estou aqui mas quem sabe não sejamos nós apenas frutos do diálogo entre a mão do artista e o olho do espectador, frutos talvez de um acaso, mais um entre tantos.
Para Yves Klein, "o azul não tem dimensões, ele 'é'”. A camada azul sobre as pinturas é como o narrador de Kundera, ao “consolar” o personagem Tomas asseverando que só o acaso tem voz, e que as circunstâncias fortuitas que o uniram a Tereza, bem, não são muito diversas do que a humanidade experimenta em grande parte dos acontecimentos. Talvez nós é que busquemos, o tempo todo, significados nas estrelas, deliberação divina ou a força do destino onde, enfim, só haja mesmo o acaso.