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A arte de sobreviver a um naufrágio | Por Cesar Kiraly

 


é inegável que se encontram mais ausências, muito embora a quantidade de imagens e objetos [...] são traços e pontilhados que transformam a fragilidade albina da parede ao fundo [...] as embarcações estão pela metade [...] o encobrimento [...] a parte debaixo é que faz delas naufrágios [...] não pertencem a um tempo específico [...] desde quando se flutua, afunda-se [...] o oxidante na gravura funciona como cumplicidade do efeito prolongado das ondas que se influenciam [...] a nenhuma pessoa é dado relatar ter experimentado um naufrágio até o fim [...] o fim do oxigênio é como a ausência [...] o náufrago cola imagens para completar o que lhe falta [...] primeiro o movimento invade e depois retorna abandonando conchas [...] no papel são preservadas memórias que se dissolvem na água salgada [...] todos confirmavam que os cabelos pertenciam [...] nem mulher, nem homem [...] as memórias assistem a ousadia do oceano em avançar aos poucos para apagá-las, disso extraem força [...] amigos, um furo [...] não, nunca aprendera a nadar [...] entretanto, sobrevivera [...]



1. A partir do séc. XVIII, mais especificamente, desde o momento em que Diderot começou a se dedicar a escrever sobre os Salões de Paris, para ser lido pelos nobres impossibilitados de fazerem a viagem para verem com os próprios olhos, a arte teve sua trajetória misturada a do texto. O cético Diderot compunha suas linhas descrevendo as obras de arte, os estilos dos artistas, os artistas, o público, toda a cena da arte. Restava clara, aos olhos dele, a natureza eminentemente social da obra de arte. A arte contemporânea amplifica esta dependência, inclusive, em trabalhos que nem mesmo existem fisicamente. As obras não são simplesmente objetos, nem, tão somente, intuições acerca do modo de representar, mas acontecimentos que servem de índice ao efeito que produzem no mundo, o contágio exercido sobre as opiniões, mais tudo aquilo que se escreve sobre, e que antecipa, de certa forma, o lugar a ser ocupado pelos novos eventos. A obra, principalmente a contemporânea, por causa mesmo do esforço de Diderot, é uma cena imersiva. Os gregos, por sua vez, dispunham de uma palavra para denotar prática remissível à inventada por Diderot. O termo Ekphrasis abrange a descrição de objetos artísticos, até mesmo prevê a invenção literária de obras visuais, antecipa a redução da distância entre a imagem e o texto, mas ainda apresenta concepção isolada da obra e não entende a vida interna dos envolvidos, muito menos a daquele que escreve, como fazendo parte dela. Por outro lado, apesar das imensas dificuldades enfrentadas por Diderot, ele contou com a facilidade de não ter de inventar o gênero literário no qual se expressaria, mas adaptá-lo. Montaigne havia desenvolvido a forma de escrever, que se mostraria um gênero literário, mas também um tipo de filosofia cética, usada por Diderot para falar de arte, desde si mesmo, da sua intimidade, ainda que dissimulada, o ensaio.


2. No ensaio Diderot encontrou os limites e as amplitudes para comentar sobre as pessoas que visitam salões para verem a si mesmas retratadas direta ou indiretamente. O modo como assistem a si próprias ao julgarem a semelhança entre os retratos e os retratados ou mesmo aos aristocratas, a depender da aura manifesta em seus rostos representados. O ensaio serve a Diderot para lamentar que o assombro a ser provocado pela arte seja constrangido por tal sorte de expediente fútil. Afinal, a experiência artística, justamente ao provocar o texto, faz entrever o quão longe pode ser levada. Por isso, essa forma de escrever se tornou tão adaptada a criticar, chegando, até, a ser denominada, simplesmente, de crítica. Isso porque o escritor percebe que, ao ser levado a escrever sobre a obra, ao não conseguir mais se desviar de fazê-lo, de tê-la como seu mundo todo, recebe a evidência de que pode esperar que esta realize o que ele, internamente, é incapaz de fazer, ser sempre mais do que si mesma, cada vez mais lúcida, cada vez menos cruel no exercício dessa lucidez. O ensaio sobre arte dá a perceber a incapacidade da arte, as suas limitações, sim, mas também que essas falhas são sempre pontuais e aparecem porque quem escreve sabe que não é muito esperar ainda mais dela, tal certeza, na lida com a obra, é a marca mesma da possibilidade da superação. É nesse sentido que se pode dizer pela natureza textual da obra de arte.


3. Aqueles a quem é dado persistir na escrita inaugurada por Montaigne e dedicada, por Diderot, ao acontecimento artístico, assistiram à interrupção inédita, não só dos salões, cujo prestígio oscila, em virtude de outras formas de se fazer conhecido do público, mas de quase toda a atividade expositiva. Isso se deveu à pandemia provocada por um vírus mortal e foi uma forma de amenizar os contágios. O IBEU, que hoje comemora 85 anos, foi obrigado, como o mundo todo, a fechar a sua Galeria de Arte. Ela fechou abrigando uma exposição cujo tema, ironicamente pensado pelo destino, é o naufrágio. A galeria, pelo que tudo indica, ficou lá, sozinha, até agora, com esses objetos, que ninguém pode ver. Coube, então, de modo imprevisto, ao Márcio Diegues, a exposição mais longa de um espaço expositivo, tradicionalíssimo, que conta com mais de 60 anos. O artista mesmo concordou que seria importante deixar tudo lá, sem mexer em nada. Inclusive, tendo, em uma das paredes, um imenso desenho, feito de nanquim, de uma onda a sugerir a inundação de dentro para fora, de dentro da galeria, depois, tomando o lado de fora, como se o desastre tivesse começado ali e não em Wuhan. Não seria estranho ver no mesmo desenho algo como uma mortífera nuvem bíblica de gafanhotos. Tendo como último título ‘Como Sobreviver a um Naufrágio’ fomos instados a fugir do espaço para salvar as nossas vidas, imaginando que, sendo o futuro incerto, na pior das hipóteses, a posteridade reencontraria aquela exposição, com relação a qual, no passado, havíamos lamentado a hora de finalmente apagar o mural, quem sabe com o uso de escafandristas.


4. Como se comportaria Diderot na pandemia? A peste negra é anterior aos salões e às galerias de arte, e a gripe espanhola, apesar de devastadora, não contava com uma humanidade capaz de bem controlar o deslocamento das suas populações ou excelentes prognósticos de criação de vacinas, logo, não provocou o fechamento dos espaços públicos e o confinamento das pessoas em casa. O cético escreveria sobre os negacionistas não gostarem de arte ou sobre os alarmistas não gostarem de negacionistas que não gostam de arte? Sobre o desespero dos artistas em não serem esquecidos? A adesão confusa aos mais variados espectros da ideologia política, para receberem alguma simpatia a partir do pertencimento? Ou ele surpreenderia com o silêncio? Como dar a entender o impacto da retração do espaço público, causado pela pandemia, pelas novas tecnologias de comunicação, no mundo da arte, ainda mais deformado pela incrível desigualdade entre as instituições culturais para retornarem às suas atividades? As instituições mais ricas voltaram antes, com mais segurança, isoladas e soberanas, além de terem inventado as melhores, e sedutoras, plataformas virtuais. O cético se esforçaria para mostrar a contradição entre o discurso de integração dos grupos politicamente mais vulneráveis, como indígenas e transexuais, a partir do trabalho como artistas, curadores e funcionários, tanto pelo mercado, quanto pelas principais instituições culturais, e a relação de trabalho cada vez mais precária, obrigando o seu pessoal a se estabelecer juridicamente como empresário para não precisar recolher encargos sociais e trabalhistas? A inserção de novas fisionomias precisa ser combinada com a piora da vida de todo mundo que depende do trabalho? Como dar a entender a captura dos melhores valores pelos processos históricos mais nefastos? Será que Diderot seria bem-sucedido na tarefa de descrever a arte contemporânea, nesta cena tão repleta de sutilezas? Seria ele capaz de mostrar o potencial dela, apesar de tudo, de se contrapor ao extremismo e revigorar a vida comum?



5. A escrita sobre arte se mistura às obras e as compõem. Teria Diderot sentido simpatia pelo modo como se agregam tendências políticas díspares, dando voz a estéticas transgressoras? Aprovaria ele o ardil relacional para viabilizar as luzes? Ora, não era ele mesmo esperançoso de abrir os olhos da Catarina II para o respeito às liberdades? Como receberia a cumplicidade cada vez maior entre o mercado e o discurso universitário? O que diria sobre a obsolescência do gênero que ajudou a criar com a sua triste substituição pelos textos explicativos ou de contextualização histórica? Imagino que fosse gostar de conhecer o Grupo Frente e artistas agudamente conceituais como José Damasceno e Bianca Madruga. Consigo vê-lo vestido com roupas modernas, de máscara, munido de comprovante de vacinação, com frio, diante da frase de Antonio Gramsci, reproduzida em verde, como letreiro, por Alfredo Jaar, com letras parecidas ao “Eu é Uma” da Agrippina Manhattan: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. Penso que a tomaria como imprudente, não pelo fato de os monstros surgirem no claro-escuro, mas por dar a entender a existência de um estado que não o claro-escuro. Ora, suponho que o cético pensaria que estamos sempre entre um mundo que morreu e outro que nasce.


6. Houve um tempo, não muito distante, na América Latina, sobretudo, em que alguns grupos eram isolados do poder político e dele só sofriam o efeito. Nessa época, críticos, como Mario Pedrosa, repreendiam a falta de politicidade da arte brasileira. Nela faltava a disposição de estabelecer meios para que o poder pudesse ser melhor distribuído, nem que fosse, como na sua defesa dos trabalhos dos pacientes, da Nise da Silveira, expostos no IBEU, pela Esther Emilio Carlos, em momentos diferentes, simplesmente o poder de existir sem ser desejado. Ainda hoje, a capacidade de produzir efeitos políticos, para o bem e para o mal, ainda é bastante desigual, mas não tanto, inclusive, na arte contemporânea. Um dos marcadores, por exemplo, é a impossibilidade de se falar de obra de arte contemporânea sem que a interpelação pela identidade componha o estatuto da obra de arte. A frase de efeito que aponta a inevitabilidade da política em todo ato estético, contudo, já pode ser interpretada de modo menos ingênuo. Se a tão desejada convergência entre estética e ética é, no mais das vezes, bem-intencionada, talvez seja o caso, em certos momentos, de nos esforçarmos pela menor politicidade possível do ato estético, pelo menos nos seus momentos de ofensividade. Afinal, na política alguém é sempre, mesmo que devidamente, mormente, indevidamente, posto a sofrer.


7. Ainda no séc. XVIII um outro cético ensaísta escreve um ensaio de título A Arte de Escrever Ensaios. Ele não diz nada sobre como escrever ensaios. Na verdade, trata-se mais de incentivar que estes sejam escritos e o faz a partir de um modo de vida que vê como preferível. Há o mundo dos intelectuais que não convivem com ninguém e o das pessoas que convivem, mas não querem pensar. Claro, há também o das que nem leem ou pensam e nem convivem, mas essas são almas perdidas. Hume acredita que o mundo do ensaio é aquele em que os pensadores falam com as demais pessoas, frequentam as ruas em que a vida acontece, e todo mundo se interessa pelo que se pensa, menos para ser convencidas, porque uma conversa em que o interlocutor quer convencer é demais aborrecida, mas por que há um prazer em lidar com ideias diferentes. Trata-se de uma maneira de viver em que o naufrágio é sentido como um peso, algo ruim, porque, apesar da aventura, nos priva do outro. O ensaio é a vida para a qual se quer voltar.


8. Márcio nos mostrava como um naufrágio seria interessante e como precisaríamos fazer para a ele sobreviver. Até que fomos surpreendidos pelo acidente e não tínhamos pista do que fazer. A sobrevivência se deveu menos a saber o procedimento correto e mais ao acaso somado a alguma prudência. Havia o tempo a passar entre o naufrágio e o retorno a uma vida de ensaios, mesmo tão precária. Primeiro, desejar retornar ao estímulo aos bons espaços de convivência era uma motivação, mas apenas se não se a tomasse como uma finalidade, porque podia muito bem não acontecer, demorar demais, sendo, então, mais causa de desespero do que de qualquer outra coisa. Assim, atravessar implicava a aceitação de olhar o mar como intuição da pura felicidade, como diria Hans Blumenberg. Depois, certo contentamento, não por passar por tudo isso, porém ser testemunha de um tempo histórico relevante. Afinal, não deixa de ter uma beleza trágica, toda aquela madeira submergindo aos poucos, os objetos de uma vida inteira começando a boiar em infinitos tons coloridos, desde que não se pudesse fazer nada para ajudar. Nada mais irônico do que contemplar com interesse uma imagem que se desfaz em outra, sabendo que a perspectiva na qual se encontra também afunda. A quem caberia escrever ensaios se a observação do naufrágio a ser contada é acompanhada por quem, mesmo sabendo que afunda, não pode se dar ao luxo de se sentir visto pelo náufrago que assiste? Esse seria um outro ao qual ensaiar? Como inventar um salão no qual com ele se possa falar?     


Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Teoria Política e Estética no Departamento de Ciência Política da UFF.