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Poesia e Arte em casa - 8 | António Carlos Cortez & Márcio Diegues



nada sabíamos de estilhaços no coração dos dias.
havia um perfil materno nas estradas
e os nossos corpos eram conduzidos ao centro do silêncio
porque nessa parte baixa da cidade o mar era infectado
e as primeiras chuvas traziam vozes de fantasmas
como uma última edição de um romance gótico.
guardei de ti o sangue quente o sangue fértil
de verões passados à beira de um mar de areia
palavras como barco floresta viagem
eram signos ignorados. Os dias infinitos
talvez tivessem passado e mais valia agora
aproveitar o bilhete de comboio em direção
ao próximo apeadeiro: a neblina


*


porque existe este ritmo de luzes
no barco nas margens do poema
porque as palavras procuram lugares secretos
palavras como barcos

navegando p’ra lugar nenhum
por entre ritmos e memórias
lembranças de viagens e regressos
Relembras a primeira viagem que te trouxe
ao lugar da doença

território neutro guindastes
barcos abandonados na cidade
era tempo ainda de voltar


*


nothing is more exactly terrible than
to be alone in the house, with somebody and
with something)
you are gone.


e.e. cummings


e era no mar alto que deixavas as mãos
percorrendo o doce palpitar das raízes.
num tempo anterior a nós
havia palavras para escrever barcos no rio como livros
de memórias sem mácula
era bom receber os dedos intactos
como frutos próximos da estação.
as terríveis noites do sul recebiam-nos
como só algumas cidades sabem receber
quem se ama muito




António Carlos Cortez
(in "O tempo exacto - antologia pessoal", Editora Jaguatirica, 2015)

Fotografia de Márcio Diegues





| "Poesia e Arte em casa" é resultado de uma ação realizada pela Galeria de Arte Ibeu em sua página no Instagram. Esta série de postagens tem como objetivo aproximar a obra do artista Márcio Diegues à produção poética de diversos autores que se relacionam com a temática do naufrágio e do isolamento. |