Beira mar
Não é o afogado. Posso ver que não é o afogado.
Posso ver pelos seus braços, vivos, seus olhos,
cristalinos; o modo como suas mãos se movem,
vivas, posso ver, não é o afogado. Esteve no mar
e voltou vivo. Havia areia, cansaço, alegria na sua pele;
não lembro de algas entre seus cabelos mas lembro
de seus cabelos, flutuavam; e nítido era o barulho
das ondas nos seus olhos, vivos, cristalinos.
Não é o afogado. O modo como saiu da água, reto,
as pernas perfeitamente pernas de homem
que foi ao mar e voltou e se deixou secar ao sol.
Espanto-me de alegria por ele não ser o afogado.
Todo o meu terror se enche de alegria. Não penso.
Encho-me de gratidão. As nuvens ardem por dentro
e a tarde se dobra na direção das falésias.
Não é o afogado. Mas é de tal modo delicado
que ele esteja vivo que receio tocar seu rosto.
Está aqui, entre os barcos que voltaram,
entre as coisas que existem: coqueiro, vento, flauta.
Esteve no mar. Os braços abriam a água e a água
se fechava; os braços insistiam e outra vez a água
reunia suas águas; braços, espuma, pernas, lutavam
ou dançavam; então ele ergueu a cabeça para fora
e respirou. Não é o afogado. Digo o nome Deus
por ele respirar. Digo o nome Deus por cada vez
que ele respire. Maravilhosamente, espantosamente
está vivo. Esteve no mar. Eu vi. Mas voltou vivo.
Toquei seu rosto, vivo e cristalino.
(Eucanaã Ferraz in "Escuta", 2015)
| "Poesia e Arte em casa" é resultado de uma ação realizada pela Galeria de Arte Ibeu em sua página no Instagram. Esta série de postagens tem como objetivo aproximar a obra do artista Márcio Diegues à produção poética de diversos autores que se relacionam com a temática do naufrágio e do isolamento. |