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Texto crítico de Luiz Alberto Oliveira para a individual de Alessandra Vaghi

 


Uma Reflexão sobre Ritual e Sacrifício
Sobre a exposição “Hecatombe”, de Alessandra Vaghi
Luiz Alberto Oliveira

Na antiga Hélade, foram costumeiros os rituais em que animais eram sacrificados para propiciar os Deuses, dentre eles Hera, soberana do Olimpo e protetora dos lares, e Atena, divindade da sabedoria e da guerra. Quanto o número de animais era grande, a cerimônia era chamada de “Hecatombe” (o termo grego original designava a matança de 100 reses). Em nossos dicionários, o termo passou a significar chacina, massacre, carnificina. E, por certo, não apenas de animais de pastoreio.

O conjunto de trabalhos artísticos que Alessandra Vaghi nos apresenta sob este título oferece várias dimensões de reflexão. A mais imediata diz respeito a uma inflexão que vivemos na sociedade contemporânea: a hecatombe é das matas, em favor dos bovinos. O exame de mapas da cobertura vegetal no Brasil de algumas décadas para cá não deixa dúvidas acerca do morticínio em larga escala desfechado contra savanas e florestas, a ferro – e a fogo. Pois um segundo viés de devastação ampla foi o da conversão de madeira em carvão, em particular para uso em siderúrgicas. Deixando de fabricar ar, a mata fornece fogo para forjar o ferro; a contemplação dos sacos alinhados de lenho carbonizado inevitavelmente nos questiona sobre sua origem. 


Em seguida, e ainda mais profundamente, somos conduzidos da substância para a luz – ou, antes, para sua abolição. É o negrume do carvão, por contraste, a fonte principal para o transluzimento do ambiente; a claridade diáfana dos feixes luminosos da cave onde os gestos rituais se desempenham – subterrâneos, silenciosos, suaves – abduz, e compõe, com o peso escuro da muralha de sacos. Este cenário íntimo, recluso, hospeda a sequência de movimentos pelas quais uma moradia – o lugar onde a gente se demora – é constituída sob nossas vistas, encarnada nos utensílios que põe o banco como mesa. Este domicílio improvável é como que o avesso da paisagem vista do alto, tão belamente exposta ao lado; tal como lá a vida se diferencia e espraia, aqui é a feminilidade que se multiplica.

De Jorge Luis Borges aos paradoxos quânticos e às histórias em quadrinhos, o conceito de multiverso se disseminou largamente em nossa cultura. O rol de questionamentos que Alessandra nos traz tão sutilmente talvez tenham como eixo integrador, fundacional ainda que indiscernível, fulgurante ainda que obscuro, o mistério mesmo de que as Deusas arcaicas eram símbolo: o da potência multiversal do feminino.


Rio, 03 de Abril de 2024