1. Apesar das imensas qualidades do romance da Tatiana Salem Levy, importa-nos apenas uma dimensão. Ela aborda o fato dos antigos sefarditas de Portugal, dos quais é descendente, depois da expulsão, no séc. XVI, levarem consigo as chaves de suas antigas casas, na esperança de um dia retornarem. É um tipo de lenda até que descobre que seu tio era possuidor da chave da casa de Lisboa. O livro é muito mais do que isso, porém nos é relevante referir a uma casa que tenha ficado vazia.
2. Vazia não é bem o caso, porque é provável que tenha recebido novos donos. Algo semelhante é descrito por Lanzmann. O comunismo na Polônia assenta um sem número de famílias pobres nas inúmeras casas boas, com saneamento, que haviam ficado sem moradores. A maioria dos novos donos se importavam pouco com a memória de suas novas moradias. Os proprietários agraciados, a não ser de modo muito abstrato, atinente à extrema sensibilidade, não tinham nenhuma responsabilidade pelo esvaziamento das ótimas residências. Afinal, nada mais justo do que a permissão à pessoas sem casa de morarem em imóveis agora sem donos.
3. Dentre as preocupações finais de Derrida esteve o conceito de hospitalidade. O desenvolvimento do tema participou das muitas convergências que buscou com o trabalho do Emmanuel Levinas. Em suma, a hospitalidade é uma bela virtude justamente por causa do seu risco. Ela é quão mais meritória na proporção mesma em que se desconhece o hospedado. A aceitação do abismo significa um novo mundo. Mas e o inverso? A matriz da gravura? Alguém poderia ser hospitaleiro sem antes dizer sim aos donos que se foram? Seria possível dizer sim a quem chega sem dizê-lo a quem saiu? Digamos, ainda estão os entalhos da porta, as marcas no chão dos caminhos mais percorridos, alguns móveis, quem sabe, marcas de prego no batente e objetos. Ou, numa acepção mais esfumaçada, se os traços foram deliberadamente apagados, como hoje se faz, na adequação, ainda restasse uma aura, uma sentença não dita, um eco, um fantasma. Como ficaria? A hospitalidade precisaria receber esse estranho hóspede? Não seria este o verdadeiro abismo? A hospitalidade não teria a sua condição em uma dívida?
4. A Chave de Casa nesta individual da Caroline Veilson não propõe alterar o sentido da hospitalidade e sim o expandir. A questão é receber os obrigados ao deslocamento e os rastros dos deslocados, claramente passíveis de despertar afetividade. A disponibilidade às almas desalojadas é uma bela resposta aos maus sentimentos não mais reprimidos. Aquilo deles que é deixado, torna-se precioso para quem o encontra. É o amor aos vestígios que nos dá um sentido.
5. Não estamos completamente à mercê dos desvãos impostos pela
autoridade. A memória, o testemunho e o acolhimento ao estranho dota os
seus praticantes de uma bela capacidade de deslocamento. Um curioso modo
de ser nômade, portanto. Se não aqui, lá. É possível que o que não
puder ser levado seja amado e conhecido. Uma escola prática da
necessidade de receber. A coragem de preservar não pode tudo contra a
expulsão, mas ela pode muito. Porque se trata de laço ainda mais bem
atado do que o familiar. A relação entre a matriz e o papel não é como
mãe e filho. Ela é a posição de quem se apropria dos artefatos deixados e
os explica aos descolocados que acabam de chegar. A impressão é o outro
acolhido e a matriz não é sua família, porém aquele que é portador de
objetos que possuem uma história que não é a sua. Ou que é sua por
adoção. A matriz é como quem se converte a receber o outro a partir do
amalgamado entre o que é seu e o que adotou. Ela é tão somente um
amontoado de traços. No somatório afetivo a matriz parece de um outro
mundo. Ou pelo menos como pertencente à transição entre mundos.
6. O cabideiro tem que ver com a carnalidade das roupas, a lida comunitária delas em um lugar, mais de uma pessoa, casal, trajes de muitas cores e tamanhos, cintos, gravatas e cachecóis. Como querer um ente tão espaçoso? Ele precisa de entorno, para si e mais os volumes que ostenta. Poderia ser dito uma espécie de meio biombo, uma vez que mata um canto e se alonga. É difícil de imaginar um mundo em que ele pudesse ser colocado no centro de um cômodo, como um totem estranho e primitivo. A mesma coisa para os guarda-chuvas com valor, que podem ser reparados. A chuva nem mudou tanto, como também se molhar nela é mais ou menos a mesma coisa. Muito embora, ele não seja mais um objeto artesanal ou nem quase isso. Não vale mais à pena evitar esquecê-lo, por exemplo, ou dá-lo de presente a quem se estima. A elegância de nele se apoiar há muito se foi e a exibição de seu cabo ornado é sem sentido. O aforismo “eu esqueci meu guarda-chuva” é tão inconveniente, como pretexto para interrupção de um evento, como é ridículo tê-lo como de estimação ou de família. A investigação de um guarda-chuva, como a da Veilson, teria que ser justificada no eixo da reprodutibilidade técnica, como sobre o caráter descartável da mercadoria ou congênere. Aqui não, ela o faz se aproximando das varetas disfuncionais, como quem observa a física perfeita das pernas de uma bailarina em flerte desafiador à anatomia. Importa, positivamente, que ele está todo quebrado. É relevante que tenha sido de alguém e encontrado nos armários desta casa. Acolhê-lo significa sabê-lo de cor, implica repeti-lo em seus detalhes, sempre novos. A coisa se repete com a cadeira como indivíduo. É divertido pensá-la comparada a de Kosuth, que tem uma definição e não um dono ou um portador. Ela poderia ser associada a do Beuys, no que diz respeito à pessoalidade e ao pertencimento, mas menos radical no peso do passado, representado por uma imensa camada de gordura. Não é uma cadeira, mas esta cadeira. Como dicionarizar a definição desta cadeira? Ela é de quem foi embora e também de quem cuida dela. Essa é a razão de ser conservada invertida. Se resgatada fará ainda uma imensa falta.
Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política à UFF. Desde 2015 é Curador da Galeria IBEU. Autor, dentre outros, de Fuga sobre o Branco [ ].