Top Social

A Arte Contemporânea como Língua Estrangeira | Por: Cesar Kiraly

 


1. O aprendizado de um idioma estrangeiro é quase sempre pensado do ponto de vista prático. A utilidade é associada à empregabilidade. Disso se segue o esforço das famílias em matricular os filhos nos cursos de línguas; hodiernamente, inclusive, no ensino bilingue, capaz de dotar a criança de dois idiomas maternos. Esta, no passado, uma especificidade das casas compostas de culturas emigrantes, insistentes em não perder o laço com o passado. O mercado de trabalho, como motivo para estudar idiomas, é uma particularidade que se inicia com o inglês, entre nós, principalmente a partir dos anos cinquenta, depois abarcando as línguas de outros parceiros comerciais, como o alemão, o espanhol, e, na última década, não sem imensas dificuldades, o chinês. Antes disso, como comentam nossos avós, o francês era a fala outra que se arranhava, cujas noções eram adquiridas na escola e a fluência uma marca de distinção social. Ainda que as conversas fossem entremeadas com pequenas expressões em francês, conseguir conversar sem dificuldades não deixava de ser ostentado como um dos mais importantes predicados. O biquinho até hoje é chique, mas, como se diz, não enche barriga na época da competição.

2. Por outro lado, rapidamente se percebeu que a empregabilidade e a distinção social não são os melhores motivos, ainda que de apelo inegável, para se aventurar nos sacrifícios de se aprender uma nova língua. Ora, é muito difícil competir com os bilingues e, para se ostentar distinção, é preciso frequentar os ambientes em que ela faz sentido. A melhor razão, na verdade, é dispor de uma alternativa à realidade imediata. O campo semântico de estrangeiro é bastante sugestivo, nem mesmo a globalização ou a virtualidade foram capazes de restringi-lo. Ele é composto por estranho, alheio, outro, diferente, transcendente, exótico, sem esquecermos do divertido alienígena. Disso se segue, a não ser pelo idioma materno, todas as línguas, porque indiretas à realidade imediata, trazem consigo um perigo. Não importa se o idioma aprendido pertence a um povo em momento de vigor comercial ou a um grupamento social extinto. Se a língua é popular, como o inglês ou o espanhol, ela atrai um sem número de variações provocadas pelo contexto de origem daqueles que se aproximam dela, sendo quase impossível encontrar um âmbito em que o idioma padrão seja falado, se é impopular, o contexto original dos seus sabores remete a um mundo muito distante, quase nunca querendo dizer aquilo que queremos dizer com ela. Se, poeticamente, até mesmo a nossa língua nos é estrangeira, o idioma diferente do nosso, adquirido, desperta uma sensibilidade exótica para o que é em si, por que não, alienígena.

3. Por que um idioma estrangeiro seria perigoso? Por que o risco por ele oferecido seria relevante? Valeria à pena, aceitar o risco da diferença para ganhar as delícias de uma alternativa à realidade? Há algo comum à empregabilidade e à distinção que participa desse perigo. O emprego e a distinção nos oferecem independência à realidade, tal como um novo idioma, ainda que em situações outras. Imagine só, ter a sorte de deter uma diferença desejada, como uma beleza exótica, uma imaginação publicitária, a habilidade de fazer algo útil que poucos conseguem, decifrar tendências etc. Apenas uma dessas qualidades permite que a pessoa consiga viver em qualquer lugar, sem estar à mercê dos inúmeros vínculos de dependência dos quais a sociabilidade depende. Claro, falar inglês, por si só, não permite que ninguém tenha um lugar nesse mundo dentro do mundo, mas por certo é uma condição, ainda que não suficiente. Além do que, o idioma estrangeiro é a parcela de independência a que se pode pertencer, se não vivendo de forma autossuficiente, pelo menos tendo uma via de acesso a obtenção de uma perspectiva emancipada. O perigo? Ué, mesmo sem a sorte de habitar o mundo como a um quintal, saber uma língua estrangeira é ter o estranho despertado dentro de si, como um demônio particular, um grilo falante, a perceber o que todos percebem, mas também de outro jeito, a partir de um ou mais pontos de comparação. Mesmo as palavras mais comuns, as expressões mais singelas, são colocadas em novas situações, em outras bases. Se mais de um idioma é invocado tem-se uma infinidade de estranhas relações entre as palavras, os sentimentos e as situações. Não que o falante de várias línguas exercite a estranheza o tempo todo, mas a perspectiva está sempre lá, nele, latente, como um espírito assediador a sussurrar “é assim porque é aqui, lá é de outro jeito, lá se sente diferente, os acidentes são outros, não é necessário que sejamos assim”.

4. Há perigo porque sendo um estranho que não se parece um estranho, camuflado, como um de nós, aquele que compara uma palavra, uma expressão, guarda nele a capacidade de sugerir, sem que ninguém se dê conta, que as coisas se tornem de outro jeito. Se com um emprego distinto acarreta o risco de exercer esse efeito sobre a vida dos outros que o admiram, sem nada temer, na mais completa autonomia. Mas isso não é bom? Claro, mas nem todo mundo fala um idioma estrangeiro, ou se fala, nem todo mundo se dá conta do estranho dentro da estranheza, logo, apesar da independência, não se apercebe dos efeitos colaterais do manejo da diferença. Afinal, perceber, ou sugerir, que as coisas não precisam ser como são, ou que podem ser diferentes, ocasiona, sem o desenvolvimento de alguma prudência, um infinito mal estar com o mundo em que se está. Mas o perigo vai além disso, porque o perspectivismo ingênuo leva ao mal estar, não só, esse desperta modos de sentir muito piores, como o ressentimento. Há momentos em que o conteúdo do sentimento negativo é justificado, como diante de injustiças profundas, donde é móbil para algum melhoramento social, pelo qual é importante o risco, noutros não, demonstrando apenas incapacidade de lidar com os efeitos de estranheza que uma língua estranha inaugurou. Mesmo assim, se o conteúdo implicado no ressentimento, por vezes, tem razão de ser, ele, nele mesmo, é um círculo vicioso, que, ao perceber a falta de necessidade do mundo, condena-o simplesmente porque lhe parece estranho. Se é compreensível recear o estranho, ao mesmo tempo em que é preciso aprendê-lo, como alheio, para perceber os detalhes do que é familiar, materno, o ressentimento que essa perspectiva torna possível, por si só, não se justifica, porque apenas a condenação do familiar pelo familiar, ou pelo alienígena feito familiar, faz sentido, é preciso um novo idioma para condenar a realidade em que se está, não porque ela não é outra coisa, mas porque a diferença mostra que ela pode ser melhor do que si mesma. Se ela for incapaz, não há nada com o que se ressentir, mas lamentar.

5. A parte estrangeira de nós mesmos é inevitavelmente melancólica. Um idioma estranho faz com que os hábitos pesem sobre nossos dias, contamina-nos com as toxinas exaladas pelo mofo escuro e pelo tédio. Não há novidade nisso, nem há problema. Na verdade, mais deve a beleza à melancolia do que a qualquer outro tipo de afeto. Mas ela não é só uma sensibilidade especial da qual se alimenta a diferença. A melancolia é também intolerância à melancolia e a intolerância à melancolia é o ressentimento. Nele mora uma imensa potência de apresentar o mundo em termos adequados, mais atentos e dedicados, porque, movendo-se em um idioma outro à localidade que o incomoda, aprendido adulto, revisita a linguagem na qual se insere no dia a dia. No ressentimento, entretanto, mora também a indisposição com toda perspectiva estranha que não a adotada para ressentir, a insatisfação com toda a diferença que não aquela usada para sair do mundo imediato, donde a imensa facilidade do ressentimento para criar laços duradouros. Não é tão simplório quanto dizer que o ódio aproxima as pessoas, mas que o apaixonamento por uma perspectiva estranha, que evita outros tipos de alheamento, permite a cumplicidade entre duas pessoas que se recusam a falar outra língua, muito embora o idioma que falem nem seja aquele que lhes é materno, nem seja o do lugar onde estão. É como compartilhar um trauma, mas em oposição a todos os outros. A melancolia não leva necessariamente ao ressentimento, mas é a sua condição. Além do que, o ressentimento é o modo mais eficiente de escapar da inatividade melancólica, tornando o sentimento negativo em energia contra o mundo ou a favor de certa diferença.

6. A arte contemporânea é uma língua estrangeira. Uma vez que ela não tem uma nação, sendo essa, talvez, uma das suas maiores virtudes, é sempre um idioma aprendido adulto, seja lá onde for falada. Essa é uma clara distinção entre a arte contemporânea e a arte em geral. Ela é uma língua em que inadequados do mundo todo podem se comunicar. Isso permite que os falantes disponham de um vocabulário comum, mas que falhem ao se referirem à problemas locais uns para os outros. Isso porque cada um vem de um contexto diferente. As pessoas buscam aprender a arte contemporânea em virtude de problemas locais, mas ela mesma é uma língua estranha geral utilizada para que diferentes comuniquem o que os outros só entendem, via de regra, alusivamente. Não é bem certo dizer se a melancolia leva aos idiomas estrangeiros ou se a perspectiva estranha inaugura a melancolia, na maior parte das vezes, a língua alienígena é aprendida na adolescência, fase, em si mesma, anômala da vida. O mercado de arte contemporânea, na verdade, absorve o local passível de alguma sensação de compreensão geral, momentos em que as pessoas se convencem da existência de uma analogia mais ou menos adequada, ainda que haja muita confusão sobre os referentes. É por isso que é o caso de dizer que a arte contemporânea, apesar de um idioma geral, não é, nem deveria se pretender, uma linguagem universal, como foi o caso da arte do renascimento ou da arte moderna. Ela é uma linguagem dos problemas locais que comunica para um público mais amplo aquilo sobre o que o idioma materno resiste em conseguir dizer. Nada mais compreensível que as comunidades, quão mais apegadas às suas tradições, menos disponíveis estejam ao que a arte contemporânea tem para dizer. O artista, com essa língua diferente que ele aprende, passa a sugerir, por experiências e objetos, o campo semântico no qual está o evento sobre o qual se reporta e sobre o qual o distante não tem como saber o que é, mas é capaz de entender as coordenadas. Trata-se de uma comunicação geral inexata sobre fraturas locais. Se falada de modo ingênuo, torna-se, ou universalista, ou seja, sem razão de ser, ou um esperanto dos sentimentos ruins. Por que então se deveria dar atenção à arte contemporânea? Ora, como uma língua outra, inventa condições de autonomia, seja para encontrar outros falantes, seja para existir para além da comunidade à qual se pertence, confere meios para perceber a realidade de forma incomum, obtendo elementos de contraste, oferece uma via de acesso para a compreensão da melancolia e do evitamento intolerante a ela, contribuindo para o desenvolvimento de formas de autoconsciência. Se não somos imediatamente seduzidos pelo seu ressentimento, ela se torna um idioma precioso para melhorarmos as formas como nos relacionamos e vivemos.

7. Não é justo responsabilizar os idiomas estranhos pela melancolia que nos fazem sentir, talvez nem mesmo pelo ressentimento que despertam em alguns. Não teríamos visto nada sem eles. A maior das derrotas parece se dar ao perdermos a consciência de que é o ressentimento falando, de não nos darmos conta de que se trata de um artifício da atividade e não do mundo mesmo, pelo menos não segundo a ênfase de um sentir negativo em detrimento de todas os outros. É claro que há formas estranhas de ver sem que as toxinas da melancolia sejam tão danosas. Elas parecem ser as mais recomendáveis, mas dela não trataremos. E são a única alternativa, uma vez que é insuportável mergulhar no ressentimento e tê-los todos ao mesmo tempo, como numa torre de Babel. No mais das vezes, esforçamo-nos para aprender uma nova língua em função do desamparo sentido na vivência do nosso próprio idioma. A ironia é que mergulhar no outro, para escaparmos de nós mesmos, do efeito de captura da realidade próxima, ao mesmo tempo em que nos liberta, num certo sentido, faz as vilosidades da melancolia se tornarem mais sofisticadas, com isso, também as do ressentimento. Nada mais sedutor do que um ressentimento convicto. A vantagem da arte contemporânea sobre todas as outras línguas estrangeiras é que nela o ressentimento surge como obra de arte. Ainda que não se goste dela, num primeiro momento, há que se reconhecer a vantagem do mau sentimento elaborado em objeto, poema, e não simplesmente veiculado como discurso. Até porque, os ressentimentos podem até ser partícipes da mesma intolerância à melancolia, mas eles não se equivalem. O momento em que a elaboração torna possível lidar com o afeto para além da sua captação de adeptos, ela se expõe a ter o seu núcleo melancólico conhecido, quem sabe, até mesmo, o seu sentimento negativo inativado. No mundo contemporâneo só a arte contemporânea tem sido capaz disso.



Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política da UFF.

Texto originalmente publicado no “Livro Ibeu 85 Anos” (RJ, Ibeu, 2022)