Paisagem, o Onírico nos Dias
Ensaio Crítico
1. A convenção é que se os tenha bem separados. Viveríamos
no estado desperto e o mundo dos sonhos seria uma província selvagem, repleta
de perigos, preço que pagaríamos por estarmos nos recuperando. Ser poupado do
ataque das imagens noturnas seria a maior recompensa de uma consciência
tranqüila. Não tê-la é ser desmembrado pelos próprios fantasmas, na melhor das
hipóteses, porque a derradeira tortura seria a insônia. Nela a distinção entre
realidade e sonho começaria a se dissolver até o desterro. No delírio haveria
lógica privada para a interação das imagens e nela não poderíamos interferir. Acordados
seríamos um tanto mais soberanos e os hábitos seriam bons aliados. No sonho
estaríamos à mercê, até mesmo para sermos surpreendidos com delícias e
onipotência. Se delirantes, a invasão dos bárbaros começaria e não teríamos
onde nos esconder do que o mundo fez de nós mesmos.
2. Acha mesmo certo disputarmos? / Não estamos disputando, Disputaríamos
pelo quê? / Pela perspectiva, Você quer falar como se fosse um homem que a vê /
Ora, e quer falar como uma mulher que se percebe / No mínimo temos uma disputa
pela perspectiva / Acho que tenho uma vantagem sobre a sua / Por que diz isso?
/ Porque se cindirmos, será do meu lado a licença / Sim, porque sempre esteve,
Donde reconhece o desnível / Se eu partir não seria a mesma coisa? / Acho que
se ficasse do lado de fora por alguns minutos, talvez já fosse algo / Daí eu
abdicaria de mim? / E não teria a alegria imediata de ser o lobo das minhas
ovelhas / Se eu dissesse que nada sei dela e que ela não sabe que a vivo? / Eu
diria que ela está presa, que se permite ver apenas na dissipação / Daí eu
admitiria que a fiz desde as coisas que me são mais queridas / Ela que há muito
tempo não existe / Mais queridas e não a entendo / [...]
3. À sala, como qualquer outra, muito livros, móveis de madeira
escura, um tapete, nada aparentemente fora do lugar, nota-se que há criança,
por um boneco de pano comportado no sofá. Mas só por isso, criança educada. A
estranheza é pela janela aberta, em uma noite insanamente fria. Se se atenta,
há fita adesiva nas frestas das portas que dão para os quartos e mais outro
tanto na de conexão da sala de estar com a cozinha. O pó se acumula sobre a
imagem / de novo, tudo cinza. O utensílio doméstico cuidadosamente feito vazio
e uma mulher repousa nele a cabeça, como se buscasse o contraintuitivo.
4. Essas instâncias não
aparecem tão separadas, como se poderia esperar. Sem termos que decidir quem é
mais abrangente é o caso de admitir a densa composição onírica das nossas
imagens, da nossa linguagem. Isso quer dizer que da experiência fazem parte
nossos hábitos, e também suas inversões. A convenção de diferença entre a
realidade e o sonho pode nos divertir e confortar – a literatura é bem
dependente disso –, mas ao mesmo tempo nos faz perder a continuidade entre os
âmbitos e a disponibilidade das imagens à invenção. Assim é o caso de ver com prudência
a textura comum das associações e a plena disponibilidade dos sentidos a serem
torcidos. Se o delírio é pleno de arbitrariedade, há também a alucinação e suas
presenças camufladas em camadas cúmplices ao visível. A paisagem que nos abriga
e a qual assistimos é habitada pelo onírico embebendo os dias. Não estamos
preocupados com os dilemas de estarmos acordados ou dormindo, se nosso mundo é
o sonho de alguém. Nada disso nos importa. A questão é pelo rico amalgamado no
curso dos dias, de modo a termos aproximados viver e sonhar.
5. Ele transita algo impressionado / nesses tempos se voltava a falar
em antropofagia / tinha-a percebido idêntica a uma das puritanas devoradoras. À
mais feinha, mas isso não contaria. Os mesmos cheios cabelos louros, se
deixados incontidos, o mesmo rastro sobre a cabeça, se furiosamente trançados.
Ela o interrompe e comenta antes sobre as bases de concreto, em violenta
insensibilidade ameríndia, e depois das figuras geométricas progressivas como
escadas etc. Como? – ele argüiu. Sim, rolantes à passagem da vida.
6. Não há dificuldade, chão é chão, mundo é mundo. Caminha-se
empurrando o chão para trás, na direção do fundo. Lá onde tudo é claridade, o
tempo passa cinza, como poeira repousada nos móveis / sem perder, contudo, a
capacidade de fazer sombra para depois do corpo. E a luz que o deixa visível é
uma outra. Ele caminha à beira, por ter infamado tantos nomes. Ainda que seja
apenas uma pessoa como as outras. Daí nada treme. Ontem Emily Dickinson dizia
não poder acompanhá-lo. Espero que não tenha ficado magoado. Ela temia que
aquela parte, da cinza, fosse vida / ao que balbuciava não ser área permitida.
Uma espécie de preleção escapava dela, de que o futuro era só dor e o passado
também. De que teria algo de vazio. Daí achou melhor ir sozinho.
7. Um dos efeitos de não se lidar com a composição onírica da
experiência é o desenvolvimento de conjuntos estanques de imagem e linguagem.
Isso pode ser percebido ao se lidar com extrema disponibilidade à inversão, ao
se encontrar o onírico legendado [Aqui há Onírico] e a exigência de secura e
limpidez nos assuntos concernentes ao mundo desperto. O resultado não é a
delimitação dos campos, porque não é possível fazê-lo, se estivermos certos,
mas a insensibilidade acerca da imagem e da linguagem. Pode-se, até mesmo, usar
a gramática factual para veicular inversões oníricas, sempre foi a principal
estratégia de credibilidade da utopia; donde não há razão para que a
factualidade não esteja envolta pelo contraintuitivo. A arte contemporânea não
pode deixar de procurar distinções, não pode sacrificar a depuração do gosto. A
legenda é tão somente a legenda e não é porque a seta aponta para o mundo que
se trata de mundo e não é porque tem tom de sonho que é sonho.
8. A questão não é eu não saber onde estava, ou de me aparecerem como
paisagens urbanas. O mais importante é que eu me encontrava em tal estado de
perdimento, que nenhum daqueles postais me dariam o senso de pertencer. Lembra
aquele livro do meu avô? Aquele que escolhi dar de presente. Então, havia um
postal dentro dele. Nada escrito, só o postal. Eu estive ali. Naquele papel
velho, esquecido dentro de algum lugar. Era isso que queria, achar uma imagem
da vida passando, sem que fosse dissimulado o vazio. Que por mais esforço que
fizessem, ninguém poderia dizer ter estado ali com ninguém. Aquele era o meu
lugar, só eu estive ali. Como eu saberia? Porque aquele espaço em branco, sem
dono, só poderia ser o meu.
9. Sempre tive medo de ser arrastada para morar numa casa em obras.
Tenho uma tia que viveu e morreu assim, sempre numa casa em obras. As casas
eventualmente entram em obras. Mas há casas que trazem a obra nelas. Isso
acontece quando alguma incauta se permite morar antes de acabada. Uma maldição
passa a fazer parte da casa e a obra nunca mais sai dela. Não há fantasmas. As
coisas são feitas dos seus acidentes, como as pessoas, e esses se expressam
quando se presta atenção neles. Uma casa em obras fala a sua ruína. A própria
obra assiste a sua ruína. Se prestar atenção, verá isso. Uma casa presa nela
mesma, se percebendo perder paredes e telhados. Os arruinados respiram todo
aquele pó de cimento. A visita só tem a parte visual da ruína. Ela é só de quem
a vive, como se estivesse dentro de um vidro.
10. Não sei por que soa estranho. Assertivamente assim, apenas uma
vez. Estávamos com uma cadeira de três pernas, cujo encontro fora incomum e da
qual nos desfizemos com chamas à orla e uma colagem de um sem número de cartas
despedaçadas. Sim, faltava alguma coisa, precisávamos de algo e encontramos um
galho. Apenas devolvemos o que era dele, silenciosamente, e a todos os
momentos. A disponibilidade de sentir o que tem que ser movido, precipitar-se
na direção de extinguir a passividade, nas poucas oportunidades em que esse é o
caso, a agilidade para notar a capacidade das pessoas e dos objetos que lhes
forem pares, cúmplices, aproximar os pertencentes à mesma enfermaria, desse
modo discreto, para mim, é a única forma de se mover. A escolha, se assim for,
é o menor dos problemas. Ela quase se impõe. O único princípio é perceber que
se os matizes estiverem confusos, indiscerníveis, adensado verde, por exemplo,
no caso de floresta, não se pega ou se larga nada. E se for explícita a divisão
entre as cores, como num descampado, é tempo de abandonar e seguir em frente.
11. A depuração do gosto acerca da continuidade entre realidade e
sonho, pois bem, frustra as más intenções dissimulatórias. Ora, não é porque é
regular que é sério ou por inverter as relações, que é inofensivo. Além disso o
aprofundamento nos permite lidar sem pânico com a dupla presença.
12. Ela estava com os cabelos presos, imersa em alguma coisa que
precisava fazer. Eu podia vê-la com calma, como se tivesse todo o tempo do
mundo para fazê-lo. A minha sensação era de poder congelá-la para sempre e
perceber cada detalhe. Conforme podia depurar o que meus olhos viam, a imagem
feminina perdia em nitidez e se compunha com o que a cercava. O seu rosto eu
nunca podia ver. Como se aquilo que ela tivesse nas mãos precisasse ser visto
no seu modo de camuflagem, que de tão eficaz, avançava para seu braço exposto.
Pode ser que ela fugisse em tinta. Uma bolsa de certo peso acabava, numa tira
atravessada, por marcar a silhueta do seu corpo. Havia mais alguém perto dela.
13. Antes, de roupa de todos os dias, Nem envolta a vácuo, nem nada. Depois,
apenas um roupão de tema japonês, Não pude deixar de pensar em Madame
Butterfly. Borboleta, mariposa. Phalène, como quis Didi-Huberman. A sua cabeça
como lanterna japonesa, A minha cabeça exposta, sem poder reconhecer o rosto,
Seu vôo incessante dentro de si própria, apagamentos e acendimentos. Então,
amassa o próprio dedo na janela e me o oferece, como se fosse possível
beijá-lo. Pode ser que, se arrumássemos com fita vermelha, para me permitir não
esquecer, Donde se me criaria a lembrança de tê-la visto com seu uniforme, um
tanto alta demais para a idade, Antes do derradeiro aniversário / Mais todas
aquelas camadas e mais camadas de bolo, para ser devorado pelos lados, até ser
transformado em massa, asquerosa. A máscara insensível, com que me diz: - Nunca
estive viva, Era apenas de borracha, Uma barreira colocada entre meu penúltimo
fôlego / e o mundo.
14. A composição das imagens é sempre a mesma, elas derivam das nossas
percepções. Nisso as que reconhecemos, mas também os seus elementos. Por isso
não se pode afastar das imagens o pictórico. Elas são também as cores das quais
são feitas; mesmo quando abstratas. A dinamicidade é conseguida pela associação
de tais imagens. Daí podemos fazer como queremos. As mais comuns são as por
semelhança, amarrarmos o que se parece, por contiguidade, aproximarmos o comum
no dessemelhante e por causalidade. Esta última costurando as imagens por
antecedência e sucessão. As operações distintivas do onírico são a de
concentrar o sentido de muitas imagens numa só, tornando tudo mais denso ou
deslocá-lo de uma para outra. Se pode empreendê-las na vida desperta. O
onírico, contudo, realiza-o sem muita repressão. Se é possível abrandar a inibição
convencional de uma imagem, então é a sua dinâmica sonhadora que começa a
surgir. A principal diferença entre a imagem desperta e a onírica é a velocidade
e intensidade com que tais trânsitos são realizados. As imagens são colocadas
em estado de vigília ou sonho. Não é absurdo supor que possamos estar dormindo
e termos imagens despertas e o contrário, estarmos acordados e termos sonho.
15. Ali eu me sentia como um homem qualquer. Um homem respeitável
qualquer. Acho que representante dessa classe de homens nos quais se pode
confiar. Sabe?! Um daqueles que mal se percebe a existência e tudo depende
deles. Eu era um motorista de ônibus, um porteiro. Alguém que de madrugada
ficaria acordado, tomando conta de todos enquanto calmamente repousariam do
dia. Ao mesmo tempo, sinto-me com uma consciência incomum de mim mesmo. Isso me
parece estranho. Porque eu me observo sendo quem sou e mesmo esse se observa. A
gravata me distingue, sempre preta. Ela me protege e me é imposta. Eu trabalho
e acabo de enterrar alguém, sou eu, sempre, em eterno luto. Estou sob cerco e
ninguém me vê.
16. Estava convencida do quão determinista era ter sido obrigada a
costurar desde pequena em fábrica por série e ser visitada pela repetição dos
panos mesmo quando dormindo. Pode ser que a corrente se dissipasse um pouco,
afinal, era mesmo de uma linhagem longa, ainda que arcaica hoje em dia, de
mulheres, sobretudo em casa, debruçadas sobre máquinas de costura / corpos para
frente e para trás. Sabia que era o passado que se revolvia, quando não mais
era visitada pelas peças marcadas, mas por estranhos seres torturados
aberrantemente tingidos. A fuga começou quando a vida passou a ser desenhada em
grafite numa tábula rasa de tecido esticado. Nesse tempo, dormir era deixar de
existir. Se a casa podia ser reconhecida, nos móveis amontoados, então ainda se
ressentia, por saber das afinidades disso e ser uma mulher de ontem. Ontem,
adormeceu com a dobradura da tábula e sabia que tudo ali era da sua vida, e não
pôde reconhecer nada.
17. A imagem pode estar em modo desperto ou não. Tratam-se de
situações distintas, diferenças de estado. Elas podem se esconder uma da outra.
Até mesmo, por vezes, aparecerem indistintas. Assim, quão mais delicado o
gosto, menos indistinção. O sonho é um aceleramento. E para sabê-lo é preciso
ter pontos de confronto. Não há uma regra de limite de velocidade. É-se sempre imagem,
mais ou menos reprimida, num quadro. O sonho nos dias depende da paisagem na
qual se insere. A paisagem é a própria alegoria do contemporâneo. Porque está
tudo nela. Ela perde em eloqüência, porém ganha em completude. Nela se pode
perceber o que se move, porque é esse deslocamento que serve de mostruário das
associações e das vertigens. Nela se nota se as imagens foram capazes de afetar
os demais objetos, de fazê-los tremer em suas acepções habituais ou levá-los ao
desconhecido. Essa é a importância da dinâmica conceitual oferecida pela
paisagem para o ambiente contemporâneo: está tudo ao mesmo tempo. A sua vocação
é de acolhimento: dos retratos, dos avolumados escultóricos, das
disponibilidades conceituais, das especificidades das formas de vida etc. Aos
incautos parece que não acontece nada, que tudo se confunde. Ela é exigente e
demanda delicadeza.
Cesar Kiraly, curador, professor de Estética e Teoria Política no
Departamento de Ciência Política da UFF, editor da 7faces.