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Revoada - Texto de Cesar Kiraly para a exposição individual de Anna Paola Protasio



(escultura + vista da instalação)



Revoada


1. As paredes são tomadas. A imaginação aqui persevera e somos revestidos pela matéria áspera. Se há oposição? Ora, não é o liso ou o estriado, mas relevos muito pequenos organizados na pequena ofensa à ponta dos dedos cuidadosos. Para se mover nessa realidade é preciso desprezar um pouco a dor. Protasio precipita a superfície negra por todas as paredes, mesmo a coluna estrutural é envolvida. Há algo bem ameaçador nesse ambiente de lixas apontadas contra o mundo. Se viradas noutra direção, se friccionadas com alguma vontade, reduziriam todas as imperfeições a pó. Se investíssemos contra elas, certamente seríamos interrompidos por gotas de sangue. Sangraríamos antes de podermos vencer a agrura representada por essa forma de céu. Apesar de tudo isso, mesmo desafiando as chances, pássaros dourados cruzam o horizonte.

2. Impossível não lembrar d’A História de Gerhard Shnobble. Nela Will Eisner mostra que Shnobble é um ser humano comum, filho de pais comuns e criado para ser comum. Em seu oitavo aniversário, escorrega do telhado. Ao invés de morrer, flana lentamente até o chão. Seu pai, aturdido, reage dando uma surra no pobre, advertindo para nunca mais voar, magoado, o pequeno esquece da habilidade. Ele cresce e se torna empregado de banco. Depois de 35 anos de trabalho, ao invés de demitido, é transferido à função de guarda noturno. Um dia o banco é assaltado e ele é agredido na cabeça. Como recompensa, é finalmente mandado embora. Sai andando desvalido pela cidade. Aparentemente por causa do golpe que levou, consegue se lembrar que sabe voar. Ele sobe até o último andar de um edifício. Após se jogar no vazio, começa a voar. Nota que ninguém o vê. Faz algumas piruetas e tenta chamar atenção de algum público. É atingido por uma bala perdida. Flutua até o chão e morre. Eisner pede que não fiquemos tristes por Shnobble, mas pela humanidade. Porque ela nunca soube que houve um homem que sabia voar.

3. Não é apenas com negrume que somos envolvidos. Como abraçar um corpo vestido de agressivas lixas que nos recebesse sorrindo? Esperaríamos o imediato nascimento de asas? Seria viável aguardar o compartilhamento dourado? Ou não. Seria, então, como falar sobre o contato dos animais espinhosos no frio? Aproximaríamos o mais que pudéssemos para o calor corporal, sem exageros contudo, pelo perigo da incompatibilidade de espinhos? Sim, é diferente, se o corpo em lixa se aproxima, pode ser que aceitemos parte do incômodo, como dinâmica de cordialidade, desde que seja conhecido, que abrigue todos os bons efeitos da familiaridade, com a qual a experiência nos presenteia e da qual inconscientemente somos devedores. Se o corpo é estranho, se a vida que detém pode ser tergiversada, ora, apenas quem buscasse justamente as lixas toleraria tê-lo abraçado. É assim tão fácil obter calor, de tal forma que se pode dispensar uma sua fonte só porque por ela não temos simpatia?

4. Parece equívoco tomar o ânimo como intrínseco. Nessa conta o mesmo para o inanimado. Quem nos diz não podermos nos confundir? Se admitirmos que a diferença está toda no calor, como prever? Seria o calor o signo do ânimo ou o inverso? Não poderia a fonte de altas temperaturas estar por trás de afiadas lixas, estranhas a qualquer familiaridade? O calor é coisa posta, quem precisa dele o torna presente no corpo do qual se aproxima, um pouco como a beleza. Mas se sempre se precisa do calor, e se a animação é sempre possível, por que pode acontecer de desamparados sermos levados ao glacial? Haveria algo perverso na simpatia? Se sim, poderíamos ser levados a buscar calor onde não há e de ignorarmos que o frio pode ser uma forma de ânimo.

5. Protasio prolifera os pássaros, em matéria que nos evoca as dificuldades da simpatia. Como ser aquecido por lixas? São pássaros de mesma espécie, mas de ruidosa existência singular. Está claro que importa produzir o maior efeito de admiração possível: forçar a impressão. Para isso são feitos pássaros delicados, repletos de pequenos acidentes, em diferentes formações aéreas, são desejados, distanciados dos meios industriais em que são pousados, a tinta dourada, as placas de lixa, cada pássaro é um destino, ainda que se movam paralelos. O dourado industrial não serve para evocar beleza, mas para fazê-los perceptíveis, como ciclistas decididos a cortar o trânsito noturno, ou corredores em maratona pela madrugada, mais ainda, como marcadores em espécies animais ameaçadas etc.

6. Os pássaros são assombrosos. Eles estão quase sempre em bando para que possam se proteger. Ainda assim, se alvos do nosso animismo, se tornam representantes da liberdade. O desejo comum é ter a liberdade de voar como um pássaro. Por outro lado, não sem habitualidade, são percebidos como pragas. Um bando de pássaros famintos devorando lavouras é rapidamente associado à multidões de pessoas destruidoras. Uma nuvem de gafanhotos? Teríamos medo de tais portentos. Ser livre como um pássaro guarda violência assemelhada ao movimento que consome os recursos. Não é comum vestir uma estrutura com roupas de homem para espantar os pássaros? Seria o bando que nos visita o resultado de tal sorte de espanto? Se eles não são daqui, por que não voltam para o lugar de origem? Se assustamos daqui enquanto outros intimidam de lá, quando se daria o fim do voo? A beleza de querer voar como os pássaros é assombrosa, pois consiste em poder se mover sozinho.

7. Os pássaros se movem para onde precisam. Porém acabamos por achar que eles se movem para onde querem. Esse antagonismo nos leva aos espantalhos. Há intensa crueza em se espantar quem chega porque precisa. É justamente por essa urgência que espantar se torna tão problemático. O espantalho precisa ser tão terrível a ponto de obrigar o pássaro a voltar para o lugar de onde necessitava sair. Mais ainda, que os difusos custos de voltar sejam inferiores aos de enfrentar as forças que não permitem ficar. No fim, só rivalizam com os espantalhos as aves que se alimentam de animais mortos. Isso quer dizer que se simbióticas com a morte, o estrato da existência evitado por aquelas que migram, não há porque alguém se dar o trabalho de espantá-las. Elas nada têm a temer.

8. Fios dourados partem do teto e se prendem no chão, como um raio de luz que se expande. Protasio se move com destreza pelo deslocamento da matéria industrial. A função conceitual de tais fachos é não poderem ser atravessados, de interromperem o percurso. Lembram, mas não são luz. Não importa que sejam elegantes no ambiente. O ponto é que só se pode passar por eles se for mais estreito do que a distância entre os feixes. Não é linha imaginária, tão pouco um meridiano. Trata-se de uma fronteira. Não é bem uma gaiola. Porque essa é como se fosse uma prisão. Não há nada de bom na prisão para quem está dentro dela. Bem, salvo em histórias engraçadas, ninguém quer ultrapassar a cadeia para dentro de seus muros ou grades. A fronteira é bem diferente. Ela tenta instaurar ambiguidade onde na verdade só temos ambivalência. Nela se concentra o esforço de se ver a restrição ao trânsito como às vezes boa e às vezes ruim. As boas aves teriam na fronteira um aliado e as más um inimigo. Mas na verdade, as fronteiras são ambivalentes, quaisquer aves, para elas, são boas e más ao mesmo tempo. Como dissemos, mais protegidas estão as duras, de corpo estranho etc. A fronteira as têm como fronteiriças. Ao mesmo tempo boas e ruins, mas necessárias. Não se confundem com um homem que voa.


Cesar Kiraly curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.   



Revoada - Anna Paola Protasio




REVOADA
ANNA PAOLA PROTASIO
Artista estabelece um contraponto do material (lixas de pintura) e a poética de asas indo ao encontro de uma esperança quase que inatingível.

Abertura: 10 de novembro de 2016 (quinta-feira), às 19h
Exposição: 11 de novembro a 16 de dezembro de 2016, de segunda a sexta, de 13h às 19h
Curadoria: Cesar Kiraly


No dia 10 de novembro, às 19h, será aberta a individual Revoada, de Anna Paola Protasio, artista selecionado através do edital do Programa de Exposições Ibeu. A mostra, que acontece na Galeria de Arte Ibeu, estará aberta à visitação de 11 de novembro a 16 de dezembro, das 13h às 19h, de segunda a sexta-feira, na Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar. A entrada é franca.

Revoada, instalação com lixas de pintura e desenhos, ocupará todas as paredes da Galeria Ibeu. Poderemos ver, também, uma escultura-mobile em cerâmica, uma instalação com arame e madeira, além de uma ação poética no dia da inauguração. Com curadoria do crítico de arte Cesar Kiraly, a mostra explicita o diálogo que Anna Paola Protasio estabelece com a aspereza do material (lixas de pintura) e a poética de asas de pássaros (desenhos gráficos) indo ao encontro de uma esperança quase que inatingível. 

Essa é a 13ª individual da artista, que trabalhou 20 anos com arquitetura e design de móveis. Com especializações em desenho e história da arte, desde 2006 se dedica às Artes Visuais. 

Nas palavras do curador da Galeria Ibeu, Cesar Kiraly: “As paredes são tomadas. A imaginação aqui persevera e somos revestidos pela matéria áspera. Se há oposição? Ora, não é o liso ou o estriado, mas relevos muito pequenos organizados na pequena ofensa à ponta dos dedos cuidadosos. Para se mover nessa realidade é preciso desprezar a dor. Protasio precipita a superfície negra por todas as paredes, mesmo a coluna estrutural é envolvida. Há algo bem ameaçador nesse ambiente de lixas apontadas contra o mundo. Se viradas noutra direção, se friccionadas com alguma vontade, reduziriam todas as imperfeições a pó. Se investíssemos contra elas, certamente seríamos interrompidos por gotas de sangue. Sangraríamos antes de podermos vencer a agrura representada por essa forma de céu. Apesar de tudo isso, mesmo desafiando as chances, pássaros dourados cruzam o horizonte”.

Segundo a crítica de arte e curadora Marisa Florido Cesar, Anna Paola transparece em sua obra a herança construtiva da arte. Entretanto, continua Marisa, “a artista introduz na abstração e rigor da geometria, elementos sensíveis que vêm perturbar a rigidez das estruturas e a vontade de ordem e de universalidade da tradição construtiva. Muitos de seus trabalhos são erigidos com objetos saqueados do cotidiano e esvaziados de sua função utilitária, neste caso, ela utiliza lixas que são usadas para pintura de parede. Deslocados para o universo da arte, tais objetos repetidos e reestruturados, ou unitários, agigantados ou diminutos, pesados ou frágeis, compõem um repertório poético visual de sonhos e dores, ficções e memórias, solidão e temores. Revelam, enfim, entre o cálculo estrutural e o inesperado dos afetos, a insustentável leveza dos dias e dos seres”.

Anna Paola Protasio já fez exposições individuais em museus e centros culturais do Rio de Janeiro como Museu Nacional de Belas Artes, Casa França Brasil e Centro Cultural dos Correios e, na capital de São Paulo, no Mube, Museu Brasileiro da Escultura em 2012, além dos Sescs das cidades de Bauru, São José do Rio Preto, São José dos Campos e Ribeirão Preto e em galerias no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Nova Iorque e Cartagena, na Colômbia, e em Genebra, na Suiça. Há, ainda, coletivas como 27º Salão de Artes Anuário Embu das Artes, em 2010, e a exposição “A Nova Escultura Brasileira”, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 2012. Ganhadora de prêmio do Itamaraty e de um primeiro prêmio de escultura em Shangai, ambos em 2011, e prêmio em Embu das Artes, em 2010.




A Vida Íntima - Texto crítico de Cesar Kiraly para a exposição "Copacabana", de Manoel Novello

Manoel Novello Atlantica 2016 acrilica sobre tela 138x240cm


A Vida Íntima


1. Esta escritura sobre a exposição do Manoel Novello é feita sob a lembrança de um belo livro do escritor argentino Adolfo Bioy Casares. Rememorar A Invenção de Morel com os últimos trabalhos do Novello na imaginação fez toda a diferença para o entendimento de ambos. No livro, Casares conta sobre um náufrago que se percebe numa ilha em que os habitantes desempenham sempre a mesma rotina. Aos poucos ele percebe que não são pessoas muito sistemáticas, mas imagens produzidas por uma máquina. Inclusive, por uma dessas representações, ele se apaixona.

2. Pode-se notar por que esse romance é tão invocado para se comentar os muitos desafios abertos pelo cinema na vida social. Mais ainda, o modo como essa arte repõe o tema da representação. Casares, ciente da possibilidade de tal encerramento, prepara uma armadilha. A máquina captura as pessoas que se tornam projetadas. Elas existem apenas a partir do movimento projetado. Uma forma de morte, mas também um tipo de vida eterna, como imagem condenada a repetir, se quisermos. Nesta artimanha, Casares desmonta a representação. Ela não é apenas um duplo do representado, como via de regra se a vê, mas, sobretudo, um substituto ambicioso. No caso, a representação não só substitui a pessoa, como não há mais o alguém representado, posto capturado pela máquina de projeção. Há vários filmes que retratam estrelas de cinema que se apegam à própria imagem de juventude, como é comum que alguém se prenda às gravações do passado. Os dois lados da representação se fusionam. A dimensão projetada se torna precedente à origem. Quem poderia discordar?

3. Lembrar d’A Invenção ao ver os trabalhos do Novello faz toda diferença, porque neste a projeção é abstrata. No mais das vezes se espera que a lembrança seja composta de figuras, como se a memória fosse a ilha do Casares, mas não poderia a máquina projetar figuras abstratas? No caso a máquina projeta aquilo “[...] que nenhuma testemunha admitirá que é imagem”, mas o fato é que essa imagem antes de nos fazer jurar abriga todas as sensações do capturado . Por isso pode ser tão perfeita. Então, e se a máquina projetasse a vida íntima da representação? Não o exterior, a pele, a fisionomia, e sim a condição dela, a sensação. A resposta seria uma máquina de mostrar abstrato. Está certo que nossa memória está repleta de pessoas que reconhecemos, além disso, envolvidas em romances familiares que nos concernem. Por isso até, o destino quase sempre trágico das lembranças. Ela é feita de personagens que se repetem no que temem repetir, na vida íntima das representações, os piores medos sempre se realizam. Mas se tomarmos todo o universo abstrato em que os personagens se inserem e as partes abstratas de que esses próprios personagens são feitos, então teremos o material para que a projeção seja a de cores embebidas da passionalidade do momento em que foram percebidas. A abstração das figuras que não podemos reconhecer, inchadas com as sensações que nos são inevitáveis. Uma vez que a condição de se induzir a causalidade é perdida, restam-nos as paixões e a cores, não o drama. Claro, as paixões, as cores e as formas não podem ser obtidas sem os seus contextos, mas não é necessário que o sentido das paixões, das cores e das formas seja aquele proveniente da narrativa.

4. “Não percebem o paralelismo entre os destino dos homens e das imagens?” – Casares pergunta . Se beneficiamos a composição abstrata da experiência, temos que concordar com a simbiose.  Trata-se, porém, de um destino indeterminado. Um que tem desarmada a expectativa causal. Qual a direção de todas essas cores e formas que estão sempre aos olhos, envolvedoras do corpo? Ora, as imagens seguem o mesmo caminho que seguimos, e não sabemos nosso destino. As cores e formas somente permanecem por algum tempo, depois somem. É preciso agarrar com muita vontade o romance familiar: mas as sensações nos envolvem sem esforço. Não é possível agarrar as sensações. Por isso “[...] a coincidência num mesmo espaço, de um objeto e de sua imagem total. Este fator sugere a possibilidade de que o mundo seja constituído, exclusivamente de sensações” .

5. A entrada mais comum na abstração, a mais desinteressante, é a que a compreende como arbitrariedade do nosso espírito com relação ao mundo. Ou mesmo descoberta da verdade por trás das coisas. A própria vanguarda abstracionista nunca se rendeu à forma como fato intelectual. O sintoma dessa resistência foi o aprofundamento de toda sorte de mística para explicar a presença de quadrados, triângulos e círculos nas obras de arte. A abstração do Novello nos leva à melhores instâncias. Ela pode ser compreendida pela relação com a experiência. As formas nem nos antecedem, nem são nossas contemporâneas, elas são geradas por uma das máquinas mais sofisticadas que fomos capazes de inventar: a de produzir harmonias. Pois bem, a máquina não é infalível, as representações possuem imperfeições, indeterminações e acidentes, estão sempre quebradas, mesmo que muitas casas depois da vírgula. Por isso a abstração do Novello remete tão fortemente à vida comum. Ela é construída sob plena consciência do acidente geométrico. As formas são experimentadas nos reflexos obtidos na cidade, pela observação distraída das luzes acendendo e apagando pelas janelas, nos canos aparentes subindo pelas paredes, na multiplicidade de cores nas fachadas, nas propagandas, nas roupas, na pluralidade de fendas no chão etc. Não é difícil perceber o abstrato por todos os lados da vida. Como diz Maya Deren, se vagarmos pela cidade com inocente disponibilidade, poderemos absorver a poética da abstração, sendo mais intensa quão mais imprevista. Em suma, basta sair para procurar por algo, sem saber exatamente o quê. Esta carga explicitamente impura da abstração do Novello a disponibiliza a ser lida conceitualmente.

6. Em 2014, Novello faz com que uma série de nove fotografias contraste com suas telas em acrílica. São vitrais e janelas escolhidas como quase-formas que se entregam na inocência. O abstrato impuro respira em seu anonimato. Além dessas fotografias, os títulos de suas exposições individuais flertam com o conceito, A Cidade em ProjetoA Cidade que me Guarda, e, agora, Copacabana. A cidade é o repositório da imaginação arquitetural, mas, e isso é mais sedutor, ela é, como dissemos, o duplo em que se pode observar os fragmentos de vida íntima do abstrato. A cidade se arrasta, está triste, histriônica, exultante, perdida etc. Nela estão nossas paixões reativas, impressões, cuja fisionomia é miríade de formas. Novello reúne e restaura a percepção ampla, aberta, que só nos é simples de ver quando estamos frágeis como vidro.

7. A cidade é uma das vias buscadas por Novello. Nisso torna explícito que seu abstrato é impuro, disperso na experiência. Ele é paisagem íntima perdida nas amplitudes das sensações que o distraimento nos permite. Esta forma de abstrato conceitual é curiosamente descritiva do modo como as paixões embebem o abstrato que nos ampara. Mas até aqui é como se houvesse distância entre o abstrato da intimidade e o disperso na vida comum. Novello tem procurado preencher esse espaço. Recentemente, no coreto do jardim do Palácio do Catete, sob um desafio instalativo proposto pela Isabel Portella, ele desenvolve o complemento entre a observação do mundo e a descrição do íntimo no abstrato. A instalação é composta por muitos fios de lã coloridos que desempenham trajetórias lineares, até que o peso de objetos de metal os obriga a ricochetear como se luz fossem e a fazer ângulo. Para Novello, há maciez no contato entre as sensações intrínsecas à vida e a elaboração dos planos descritivos em que as mostra em acrílica. É a sugestão de que a inocência, sugerida por Deren, é suspensiva e neutra. Ela é frágil, mas capaz de suportar o peso com que se a intercala. Ainda, é enfatizada, imprevisivelmente, por raios luminosos diretos ou intrometidos. Agora, ele repete a prática pela tensão dos fios na parte inferior da janela da galeria, como quem realiza o neutro também como um filtro, mais uma vez deixando a narrativa do lado de fora. Novello nos faz perceber que narrar e descrever são atividades distintas. A primeira se apoia em aura tendenciosa, rapidamente renunciada pela segunda. As telas possuem relevos variados em função dos diferentes tipos de tinta acrílica. As composições primam pelas transições suaves entre as cores intercaladas com benignos sustos de vermelho. A tela Atlântica rouba o ar com grandes espaços de tons mais suaves para o cinza e para o azul forrada por matizes bem escuros. Também podemos ser surpreendidos por corredores, como aqueles que nos fazem acidentalmente ver o mar por entre os edifícios. Há tanto a reconhecer, como nos nomes das ruas de Copacabana intercalados por Novello, em uma forma de poesia concreta.


Cesar Kiraly é Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF e Curador da Galeria IBEU.      


Manoel Novello Copacabana 2016 acrilica sobre tela 138 x 240 cm