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Tempo Fóssil - Texto de Michelle Sommer para exposição de Mari Fraga







Tempo Fóssil

Michelle Sommer



“Muitas vezes pensei, durante a noite, nessas coisas debaixo da terra que os brancos cobiçam tanto. Perguntava a mim mesmo: “Como teriam vindo a existir? De que são feitas?”* Para o xamã  yanomami David Kopenawa, o que os brancos chamam de “minério” são as lascas do céu, da lua, do sol e das estrelas que caíram no primeiro tempo.

No seu processo artístico, Mari Fraga desenterra fragmentos de petróleo, betume, carvão mineral, madeira sedimentada, sal. Molda, então, a matéria que estava escondida sob a terra como as raízes das árvores. Da matéria fóssil, unidas entre si pela presença do elemento químico Carbono, emerge  plasticidade, em suas distintas temporalidades. O Carbono é o nó poético - com cor, rugosidade, textura e crítica – que está contido na escala fractal das obras, em sua maioria inéditas, de Tempo Fóssil.

A sessão de acupuntura – no corpo ou no planeta – colapsa as escalas: a pele torna-se crosta, o corpo torna-se Terra. A energia solar condensada e fossilizada das pedras de carvão mineral transpassam tábuas de madeira nova. Nesse encontro de gerações, matérias ajustam-se como dá, entre os veios da madeira lascada que agora contém a pedra, com seus resquícios de florestas que ocuparam a Terra há milhões de anos. Um zoom in e temos o mapa da América do Sul e Brasil perfurado por agulhas de acupuntura banhadas a ouro (essa poeira brilhante) marcando os locais de extração de petróleo. Do nosso continente, submerso na camada viscosa de betume, resíduo final do petróleo, pingam gotas viscosas. Choramos ouro negro.

A nossa economia industrial baseia-se em energia fóssil e no consumo crescente de espaço, tempo e matérias-primas que adquiriram a dimensão de uma força física dominante no planeta. A partir da investigação da matéria fóssil – essa que fornece dados sobre a nossa evolução biológica - Mari Fraga explora os movimentos de declínio do nosso mundo, em seu catastrófico momento político e climático.  Entre homem e natureza não são as relações que variam, mas as variações que relacionam.

A matéria fóssil contém o tempo. A matéria fóssil é memória para nós, humanos, que andamos com a cabeça cada vez mais cheia de esquecimento*, para atentarmos para um outro tempo, talvez não tão infinito assim. Em fluxos materiais carbônicos, estão arte e desastre, em lampejos de lucidez poética. Nas proposições artísticas de Mari Fraga, na matéria fóssil extraída da Terra residem as raízes do céu.



* KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. Palavras de um xamã yanomami; tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro - 1a ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Passagens Atlânticas - Texto crítico de Cesar Kiraly para exposição de Leandra Lambert



Passagens Atlânticas


incapaz de não se expressar em pedra
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso

João Cabral de Melo Neto in: _ A Educação pela Pedra


1. Esta exposição foi pensada para ser vista imersa em textura sonora. Entre cortes de composição musical e mais os rumores confusos da vida comum. A questão é a da continuidade nem sempre harmônica entre o som e a imagem. Daí Lambert montar usando ruídos como pequenos átomos a grudarem nas imagens e nos objetos como o faz a luminescência. Por isso deve o contemplador se colocar em tal passividade, atendente aos grânulos de som a pousarem sobre o arco de fotografias e objetos que se desenha diante dos olhos.

2. Do lado direito, temos par de luvas brancas, cujo peso é fornecido por quantidade de areia que lhes enche os dedos e palmas. Elas são suspensas por ameaçadores anzóis de quatro ganchos. Essas pesadas mãos seriam aquelas do último toque antes da despedida. O contato revestido torna áspero desempenhar o movimento fino. Por isso, tais dedos insistem para virar as páginas em que se acompanha a leitura de uma estranha sorte de objetos. Isso nos leva ao lado esquerdo, nele temos a amostra do desconhecimento da própria força. Da mesma forma que os sons são átomos montados / o que os torna chaves à decifração dos modos da vida comum / as pedras portuguesas funcionam como partículas da cidade. Ainda que nem sempre perceptível, uma cidade se monta de incontáveis cubos. Um cubo perfeito é uma tolice, seria como se pudesse existir o átomo de cidade na fôrma mesma da nossa ingenuidade. Nessa medida Lambert nos permite adivinhar o seu nomadismo. Além do que, envolve-nos com seu lirismo de quinas duras. Ela deambula pelas ruas e seus olhos são voltados para o chão. Ora, se uma cidade é o equilíbrio improvável de átomos pictóricos repletos de arestas, nada mais justo que eles cedam de suas posições originais e nos ofereçam a ontologia, a despeito mesmo da pretensão de alguns em os esconder. Lambert percorre o mosaico da vida urbana sabendo que vai encontrar tais falhas espirituosas. Ela as identifica / resgata-as / com todo carinho do mundo, cuida desses duros fragmentos de cidade como a um animal ferido.

3. Donde se pode voltar aos desníveis de intensidade, pois ao mesmo tempo em que trata a cidade naquilo que dela se desprende, escrevendo em sua superfície, compondo-a em pesados adornos, revela uma rigorosa pedagogia. A pedra, antes educada como elementar, depois recolhida pela lírica cautela, para ser tratada do mal que a fez deslocada do todo, recebe uma outra educação. À pedra uma verdadeira educação pela pedra. Existe um amor do querer-agarrar e outro do juízo suspenso. Mas Lambert ama essas pedras com disposição intermediária. Elas são envoltas em carinho, porém adquirem consciência de serem potenciais quebradoras de vidraças. Elas se reconhecem passivo-agressivas. Aquela sonoridade que a tudo envolvia como luminescência, então, eram também grânulos de asfalto dispersos no ar a reagir com a fumaça dos carros.

4. Após viver em Paris os acontecimentos de 1848, Alexis de Tocqueville toma o cuidado de registrar suas memórias do evento. Elas são atravessadas por sentimentos conflitivos: o de pertencer ao parlamento de uma monarquia em colapso, a preocupação de preservar sua esposa e seu sobrinho e o assombro curioso com o tipo de metamorfose que estava a assistir. A cidade não apenas sofria os acontecimentos, mas, como um ente anímico, ela parecia pensar com eles. Mais, ainda que os oprimidos não dispusessem de uma filosofia que os orientasse a agir, aquele amálgama de corpos e prédios se apresentava como um pensamento. Tocqueville registrava o nascimento do pensamento social: o de uma existência meio cidade, meio gente. Um dos indícios que o permitia indicar tais fenômenos era justamente o comportamento das pedras. Como assim? Ele diz que de 1789 à 1848 os habitantes de Paris desenvolveram sabedoria prática para construção de barricadas à interrupção do fluxo das ruas. Elas eram montadas com pedras equilibradas. Assim, nos momentos de inflexão social, nos quais, como diz Burke, a partir da Revolução, os exércitos não mais hesitam de marchar sobre a população; a despeito da posição ideológica, a cidade precisa interromper suas ruas para preservar as pessoas. Uma barricada mal pensada é sinônimo de massacre. Seria equívoco ser dogmático e começar pela certeza de que as ruas de Paris falam e sabem o que fazem, porém, se elas insistem em nos dizer o que precisamos saber, e percebemos a sua cumplicidade, por que não escutá-las? O animismo bem compreendido parece ser bem mais consistente que o pampsiquismo.

5. Parece-nos que a perspectiva não subsiste na cosmologia. Se estão juntas, então uma delas é de mentirinha. No duro, se muito, o Atlântico abriga cosmologias jesuíticas de resultados, com ou sem fumaça, no mais, resta um largo e interessante perspectivismo Atlântico. As pedras portuguesas são um belo exemplo disso. Em Lisboa, os calceteiros, instaladores de tais átomos construtivos, preferem, num intrincado sistema de regras, não só perfeitamente colocar as pedras uma ao lado da outra, segundo o motivo escolhido, como não permitir que nenhuma supere a outra em altura. O resultado é um lindo e horizontal espelho de pedras. Nele escorregões são frequentes e mesmo inevitáveis dependendo do solado escolhido para o dia de chuva. Sob rebuliço social, remover uma delas é quase impossível. A conversa com essa pedra é animicamente frustrante, principalmente nos momentos de resistência. Em Copacabana, os colocadores de calçada copiam os temas lusos, mas a superfície é plena de irregularidades, donde os sapatos encontram acidentes a interromperem as quedas, e, na resistência, ampla sorte de quinas a dialogar com a imaginação necessária à conservação.

6. Entre as pedras e as mãos (iluminadas ou oxidadas) encontramos líricos momentos vítreos. As passagens atlânticas não são apenas feitas de quinas, mas também de profundidades. Atlas sustenta nas costas um imenso cubo repleto de água salgada e tantos capilares de água doce. Além de nos equilibrar, nós que somos animais úmidos capazes de ter a impressão de afogamento com tênues variações de temperatura, ou se nossas respirações tocam a superfície das vidraças. Simultaneamente habitamos as superfícies das cidades e imergimos na imagem de modo a provocar o surgimento de lâminas que nos dividem. A fotografia dentro d’água funciona nesse registro. Ela desafia a percepção comum das superfícies para encontrar novas folhas a partir do meio. As possibilidades são inúmeras, posto a luz ser instável na água que revira. O resultado é o registro do entremeio. Afora ficar no convívio entre o abstrato e o figurativo. Sabemos onde estamos e somos incapazes de determinar o que vemos. Se apurarmos, temos os tons de minério tendentes ao ouro na imersão em água doce e a agitação como se a imagem fervesse em bolhas de mercúrio, na água salgada. O afundamento implica num outro tempo, compasso de espera, interrupção das capacidades irônicas, para a operação dos modos contemplativos.

7. Se a fixação das lâminas vítreas é um desafio, o segundo é saber como dispô-las em relação. Tais não contam com um modelo. Na Avenida Atlântica a questão é bloquear o motivo e individuar os espécimes soltos, no Oceano Atlântico, e na Mata Atlântica, o objetivo é montar uma relação emotiva entre as lâminas. Sim, elas, uma à uma, podem ser situadas, mas em dinâmica de composição, de analogia erótica, como indica Warburg no seu Atlas, querem emitir, a quem as vê, a sensação de improvável acerto. Trata-se da escolha certa no posicionamento lado a lado de aleatórias imagens nascidas, desde sempre, umas para as outras.


Cesar Kiraly
Curador da Galeria IBEU e Professor de Estética e Teoria Política 
no Departamento de Ciência Política da UFF