Passagens Atlânticas
incapaz de não se expressar em
pedra
as palavras de pedra ulceram a
boca
e no idioma pedra se fala
doloroso
João Cabral de Melo Neto in: _
A Educação pela Pedra
1. Esta exposição foi pensada para ser vista imersa em
textura sonora. Entre cortes de composição musical e mais os rumores confusos
da vida comum. A questão é a da continuidade nem sempre harmônica entre o som e
a imagem. Daí Lambert montar usando ruídos como pequenos átomos a grudarem nas
imagens e nos objetos como o faz a luminescência. Por isso deve o contemplador se
colocar em tal passividade, atendente aos grânulos de som a pousarem sobre o
arco de fotografias e objetos que se desenha diante dos olhos.
2. Do lado direito, temos par de luvas brancas, cujo peso é
fornecido por quantidade de areia que lhes enche os dedos e palmas. Elas são
suspensas por ameaçadores anzóis de quatro ganchos. Essas pesadas mãos seriam
aquelas do último toque antes da despedida. O contato revestido torna áspero
desempenhar o movimento fino. Por isso, tais dedos insistem para virar as
páginas em que se acompanha a leitura de uma estranha sorte de objetos. Isso
nos leva ao lado esquerdo, nele temos a amostra do desconhecimento da própria
força. Da mesma forma que os sons são átomos montados / o que os torna chaves à
decifração dos modos da vida comum / as pedras portuguesas funcionam como partículas
da cidade. Ainda que nem sempre perceptível, uma cidade se monta de incontáveis
cubos. Um cubo perfeito é uma tolice, seria como se pudesse existir o átomo de
cidade na fôrma mesma da nossa ingenuidade. Nessa medida Lambert nos permite
adivinhar o seu nomadismo. Além do que, envolve-nos com seu lirismo de quinas
duras. Ela deambula pelas ruas e seus olhos são voltados para o chão. Ora, se
uma cidade é o equilíbrio improvável de átomos pictóricos repletos de arestas,
nada mais justo que eles cedam de suas posições originais e nos ofereçam a
ontologia, a despeito mesmo da pretensão de alguns em os esconder. Lambert
percorre o mosaico da vida urbana sabendo que vai encontrar tais falhas espirituosas.
Ela as identifica / resgata-as / com todo carinho do mundo, cuida desses duros
fragmentos de cidade como a um animal ferido.
3. Donde se pode voltar aos desníveis de intensidade, pois
ao mesmo tempo em que trata a cidade naquilo que dela se desprende, escrevendo
em sua superfície, compondo-a em pesados adornos, revela uma rigorosa
pedagogia. A pedra, antes educada como elementar, depois recolhida pela lírica
cautela, para ser tratada do mal que a fez deslocada do todo, recebe uma outra educação.
À pedra uma verdadeira educação pela pedra. Existe um amor do querer-agarrar e
outro do juízo suspenso. Mas Lambert ama essas pedras com disposição
intermediária. Elas são envoltas em carinho, porém adquirem consciência de
serem potenciais quebradoras de vidraças. Elas se reconhecem
passivo-agressivas. Aquela sonoridade que a tudo envolvia como luminescência,
então, eram também grânulos de asfalto dispersos no ar a reagir com a fumaça
dos carros.
4. Após viver em Paris os acontecimentos de 1848, Alexis de
Tocqueville toma o cuidado de registrar suas memórias do evento. Elas são
atravessadas por sentimentos conflitivos: o de pertencer ao parlamento de uma
monarquia em colapso, a preocupação de preservar sua esposa e seu sobrinho e o
assombro curioso com o tipo de metamorfose que estava a assistir. A cidade não
apenas sofria os acontecimentos, mas, como um ente anímico, ela parecia pensar
com eles. Mais, ainda que os oprimidos não dispusessem de uma filosofia que os
orientasse a agir, aquele amálgama de corpos e prédios se apresentava como um
pensamento. Tocqueville registrava o nascimento do pensamento social: o de uma
existência meio cidade, meio gente. Um dos indícios que o permitia indicar tais
fenômenos era justamente o comportamento das pedras. Como assim? Ele diz que de
1789 à 1848 os habitantes de Paris desenvolveram sabedoria prática para
construção de barricadas à interrupção do fluxo das ruas. Elas eram montadas
com pedras equilibradas. Assim, nos momentos de inflexão social, nos quais,
como diz Burke, a partir da Revolução, os exércitos não mais hesitam de marchar
sobre a população; a despeito da posição ideológica, a cidade precisa
interromper suas ruas para preservar as pessoas. Uma barricada mal pensada é
sinônimo de massacre. Seria equívoco ser dogmático e começar pela certeza de
que as ruas de Paris falam e sabem o que fazem, porém, se elas insistem em nos
dizer o que precisamos saber, e percebemos a sua cumplicidade, por que não
escutá-las? O animismo bem compreendido parece ser bem mais consistente que o pampsiquismo.
5. Parece-nos que a perspectiva não subsiste na cosmologia.
Se estão juntas, então uma delas é de mentirinha. No duro, se muito, o
Atlântico abriga cosmologias jesuíticas de resultados, com ou sem fumaça, no
mais, resta um largo e interessante perspectivismo Atlântico. As pedras
portuguesas são um belo exemplo disso. Em Lisboa, os calceteiros, instaladores
de tais átomos construtivos, preferem, num intrincado sistema de regras, não só
perfeitamente colocar as pedras uma ao lado da outra, segundo o motivo
escolhido, como não permitir que nenhuma supere a outra em altura. O resultado
é um lindo e horizontal espelho de pedras. Nele escorregões são frequentes e
mesmo inevitáveis dependendo do solado escolhido para o dia de chuva. Sob
rebuliço social, remover uma delas é quase impossível. A conversa com essa
pedra é animicamente frustrante, principalmente nos momentos de resistência. Em
Copacabana, os colocadores de calçada copiam os temas lusos, mas a superfície é
plena de irregularidades, donde os sapatos encontram acidentes a interromperem
as quedas, e, na resistência, ampla sorte de quinas a dialogar com a imaginação
necessária à conservação.
6. Entre as pedras e as mãos (iluminadas ou oxidadas)
encontramos líricos momentos vítreos. As passagens atlânticas não são apenas
feitas de quinas, mas também de profundidades. Atlas sustenta nas costas um
imenso cubo repleto de água salgada e tantos capilares de água doce. Além de
nos equilibrar, nós que somos animais úmidos capazes de ter a impressão de
afogamento com tênues variações de temperatura, ou se nossas respirações tocam
a superfície das vidraças. Simultaneamente habitamos as superfícies das cidades
e imergimos na imagem de modo a provocar o surgimento de lâminas que nos
dividem. A fotografia dentro d’água funciona nesse registro. Ela desafia a
percepção comum das superfícies para encontrar novas folhas a partir do meio.
As possibilidades são inúmeras, posto a luz ser instável na água que revira. O
resultado é o registro do entremeio. Afora ficar no convívio entre o abstrato e
o figurativo. Sabemos onde estamos e somos incapazes de determinar o que vemos.
Se apurarmos, temos os tons de minério tendentes ao ouro na imersão em água
doce e a agitação como se a imagem fervesse em bolhas de mercúrio, na água
salgada. O afundamento implica num outro tempo, compasso de espera, interrupção
das capacidades irônicas, para a operação dos modos contemplativos.
7. Se a fixação das lâminas vítreas é um desafio, o segundo
é saber como dispô-las em relação. Tais não contam com um modelo. Na Avenida
Atlântica a questão é bloquear o motivo e individuar os espécimes soltos, no
Oceano Atlântico, e na Mata Atlântica, o objetivo é montar uma relação emotiva
entre as lâminas. Sim, elas, uma à uma, podem ser situadas, mas em dinâmica de
composição, de analogia erótica, como indica Warburg no seu Atlas, querem
emitir, a quem as vê, a sensação de improvável acerto. Trata-se da escolha
certa no posicionamento lado a lado de aleatórias imagens nascidas, desde
sempre, umas para as outras.
Cesar Kiraly
Curador
da Galeria IBEU e Professor de Estética e Teoria Política
no Departamento de
Ciência Política da UFF