A cada toque na superfície em branco, os Artistas Pintores com a Boca e os Pés compõem seu manifesto sobre a magnitude da vida; sobretudo, por atestarem que a vida se dilata para além da materialidade do corpo. A beleza íntima, corporificada na ponta do pincel, concebe cor e forma ao vazio da tela, oferecendo-nos o testemunho de que reside neles a inescapável liberdade.
Adentrando o silêncio da galeria, observamos a constelação composta por 30 quadros. Entre um e outro piscar de olhos, pomo-nos em lugar do artista. Sem o domínio dos membros superiores, atentamos à boca. A obra diante de nós não foi criada pela precisão dos dedos, mas brotou dos lábios, dum longo e delicado beijo, através do qual a ponta das cerdas nutriu os veios de um rio, desaguando no mar de cores. E as longas ondas não foram conduzidas por ventos, mas pelos músculos do maxilar. De entre os dedos do pé, nasceram o céu e as estrelas, e o sol se escondeu outra vez, dobrando as montanhas à altura da noite.
Vemos as luzes da cidade crescerem sobre o reflexo na lagoa. Em festa sorrimos, venerando a majestade do bumba meu boi. Da boca aberta foge um pássaro de bico vermelho. Pousa num galho viçoso e nos observa; enquanto, ao fundo, o sino da igreja toca o meio-dia. Conseguinte, as araras namoram abraçadas debaixo da mesma pluma azul.
Os coqueiros não se dobram sob o peso dos homens, que finalmente alcançam o fruto fresco. Desviamos a atenção para o lado, de onde vem som da sineta do bonde, e por onde os trilhos de Santa Teresa descem. Somos levados à ponte que corta o ventre da mata costeira, e ao fim pisamos a fina areia. Então, com os pés soltos no ar, limpamos das solas a poeira.
A oeste, dois irmãos de pedra observam os amantes caminhando sobre as águas; e ao norte, as araras projetam o bico no espelho do cerrado. Mais a sudeste, resiste o oásis de árvores à secura do deserto urbano. Contudo, no ventre árido do sertão, o vaidoso mandacaru nunca arreda, exibe sem um pingo de vergonha sua bela flor.
Descemos até o portal da cidade. Aceitamos o convite para provar de suas águas. E adiante, angras ameaçam qualquer barca que não seja humilde o suficiente para navegar entre suas presas.
Ainda nas cercanias da costa, subimos ao museu, cuja altitude nos afasta o esquecimento. Em sumo acordo, os pequenos olhos do cacique emitem um distante brilho. O seu silêncio guarda a memória de nossa origem. Não muito longe, ainda resiste a ruína serrana tombada, indício de que o mundo todo cai, se aparta a beleza, mas a voz de uma cachoeira ensina que a natureza nos espera nua, de seio aberto.
Contra o mar e os peixes, três homens lutam tendo apenas por testemunha o crepúsculo. Enquanto a tarde vermelha se oculta, sempre à espreita, uma onça avança na mata.
Sabemos que a luz que cinge o céu é semelhante em todas as paisagens, entretanto, o modo como descortina a verdura do Jardim Botânico revela sua face mais atrevida; diluindo-se, em seguida, lá do alto da Guanabara. Não se sabe de onde vem ou para onde vai, mas é notável o modo que ilumina as ilhas pontilhando a costa; e mais avante, do outro lado do estado, se espraia sobre uma igrejinha cravada na rocha. Subindo o mirante baiano, vários degraus acima do chão, não há nada além de mar, por qual a cintilância se vai perdendo no horizonte.
Voltamos ao chão. A festa sem fim arranca novo sorriso. Com uma mão dada ao boneco de Olinda, e a outra, ao Cristo Redentor, encantados pela marcha da Folia de Reis, completamos a ciranda ao redor do Pão de Açúcar.
Assim, a arte afasta o mito de que toda existência se encerra no corpo. Como podem notar, um olhar breve sobre nossos artistas é suficiente prova de que não há máquina ou ciência ou modernidade possíveis que superem o mistério de nós mesmos. Ao compartilhar sua luz através da tinta, o invisível se torna indivisível, algo que nem o tempo pode nos roubar.
Jonatas Tosta, escritor e professor